sábado, 30 de agosto de 2014

"Ele era como um sabiá..."

Despedida

E no meio dessa confusão alguém partiu sem se despedir; foi triste. Se houvesse uma despedida talvez fosse mais triste, talvez tenha sido melhor assim, uma separação como às vezes acontece em um baile de carnaval — uma pessoa se perda da outra, procura-a por um instante e depois adere a qualquer cordão. É melhor para os amantes pensar que a última vez que se encontraram se amaram muito — depois apenas aconteceu que não se encontraram mais. Eles não se despediram, a vida é que os despediu, cada um para seu lado — sem glória nem humilhação.

Creio que será permitido guardar uma leve tristeza, e também uma lembrança boa; que não será proibido confessar que às vezes se tem saudades; nem será odioso dizer que a separação ao mesmo tempo nos traz um inexplicável sentimento de alívio, e de sossego; e um indefinível remorso; e um recôndito despeito.

E que houve momentos perfeitos que passaram, mas não se perderam, porque ficaram em nossa vida; que a lembrança deles nos faz sentir maior a nossa solidão; mas que essa solidão ficou menos infeliz: que importa que uma estrela já esteja morta se ela ainda brilha no fundo de nossa noite e de nosso confuso sonho?

 Talvez não mereçamos imaginar que haverá outros verões; se eles vierem, nós os receberemos obedientes como as cigarras e as paineiras — com flores e cantos. O inverno — te lembras — nos maltratou; não havia flores, não havia mar, e fomos sacudidos de um lado para outro como dois bonecos na mão de um titeriteiro inábil.

Ah, talvez valesse a pena dizer que houve um telefonema que não pôde haver; entretanto, é possível que não adiantasse nada. Para que explicações? Esqueçamos as pequenas coisas mortificantes; o silêncio torna tudo menos penoso; lembremos apenas as coisas douradas e digamos apenas a pequena palavra: adeus.

A pequena palavra que se alonga como um canto de cigarra perdido numa tarde de domingo.

- Rubem Braga, do livro "A Traição das Elegantes", Editora Sabiá – Rio de Janeiro, 1967, pág. 83.



"A POÉTICA ROSEANA" Capítulo 5.6.2

5.6.2 Plurissignificação

            A plurissignificação das palavras é uma constante na obra em análise. O escritor, ao empregar esse recurso, revigora a significação e  reforça  a inovação  da língua. Na opinião de Franklin de Oliveira, sobre a técnica de Guimarães Rosa:
a palavra perdeu a sua característica de termo, entidade de contorno unívoco, para converter-se em plurissigno, realidade multi-significativa. De objeto de uma só camada semântica, transformou-se em núcleo irradiador de policonotações. A língua roseana deixou de ser unidimensional. Converte-se em idioma no qual os objetos flutuam numa atmosfera em que o significado de cada coisa está em contínua mutação. É ver, por exemplo, as numerosas cargas semânticas com as quais se apresenta a palavra sertãorealidade geográfica, realidade social, realidade política, dimensão folclórica, dimensão psicológica conectada com o subconsciente humano, dimensão metafísica apontando para as surpreendentes virtualidades demoníacas da alma humana, dimensão ontológica referida à solidão existencial – infinitas possibilidades significativas. (OLIVEIRA, 1983, p. 180).
                Diante disso pode-se afirmar que essa característica criadora de Guimarães Rosa torna-se sua marca, sendo única na Literatura Brasileira. A língua literária desse escritor adquire outra dimensão, convertendo-se em um idioma em constante mutação, dadas as possibilidades do significante. Observar-se-ão alguns exemplos do texto roseano na obra Grande Sertão: Veredas:
[...] arvorei a  minha chefia (firmar). /  Meu revólver barrasse fogo nele? (atirasse).  / Não me envergonho por ser de escuro nascimento (filho bastado) / Acode que o chefe está no fatal (morrendo).  / [...] aquilo molhou minha idéia (influenciou). Tive testa. Pensei nome feio (raiva). / A guerra podia dar de começar na boca de um momento (imediatamente). / [...] já indo; jagunço nunca dilate (não demora).  / Não me envergonho de ser de escuro nascimento (filho bastardo). /  Um professor de mão-cheia  (muito bom). (ROSA, 2006).


            Os exemplos comprovam a capacidade do autor em  produzir significados que revigoram a construção estética do texto.

sábado, 23 de agosto de 2014

"A POÉTICA ROSEANA" Capítulo 5.6.1


5.6.1 Pontuação

            Embora não se configure como um recurso de linguagem, a pontuação, na obra, também é singular e original e por isso deve ser mencionada.  Sobre ela, em seus estudos, Ferreira assinala que:
a pontuação, ainda que não ignore de todo a norma culta da escrita, é bastante subjetiva, não se deixa, portanto, subordinar às regras gramaticais, manifesta-se sobre o ponto de vista estilístico, de acordo com a intenção expressiva da mensagem a ser comunicada, do ritmo a ser impresso ao texto, da entonação e acento na pronúncia de uma palavra ou frase (inflexão). O escritor realiza combinações originais ao empregar os sinais de pontuação, optando pela abundância de travessões, vírgulas, reticências, ponto e vírgulas, interrogações, exclamações, pontos, parênteses, aspas. A pontuação excessiva impede o ritmo dinâmico e rápido, pois a intenção do narrador é prolongar seu relato, saboreando cada sentença. O leitor “esbarra” muitas vezes durante a leitura, para tentar entender os modos de pontuar, que chegam a ter um efeito “audiovisual”; procura descobrir a relação que pode ser estabelecida entre as palavras e os recursos da pontuação, a qual se afina com o sentido do texto. (FERREIRA, 2006 p. 28 a 35).
            Observa-se que o autor emprega esse recurso no sentido de levar o narrador a prolongar o relato, uma vez que a pontuação excessiva desacelera o ritmo da leitura, levando o leitor  a refletir sobre a relação que pode ser estabelecida entre as palavras e os recursos da pontuação e como se conformam com o texto. Além da pontuação deve-se salientar a utilização da linguagem popular e regional, já mencionadas na presente pesquisa, para a composição da linguagem, na obra Grande Sertão: Veredas:
Linguagem Popular: aleluia! Aleluia! Carne no prato, farinha na cuia! / Vingar é lamber, frio, o que o outro cozinhou quente demais. / Bananeira dá em vento de todo lado. / Homem não chora.../ Não cuspo no prato em que o bom já comi. / Quem tem os dois tem um, quem tem um não tem  nenhum.
Regionalismo: era homem afamilhado, tinha filhos pequenos (com família grande).  / [...] é o que o povo agora aprecêia (do verbo apreciar).  [...]  no meio do ierado numa confa (tumulto) [...]  /  [...] questã  (questão) [...] / Saranga ele não era? (simplório)  /  [...]   Varêia de ser (modificação, variação) (grifos nossos). (ROSA, 2006).

      Percebe-se que o uso dessas linguagens, em uma obra de tal magnitude, que leva  uma região rica  no aspecto  metafísico ao conhecimento do restante do país,  contribuiu  para a valoração do  sertanejo . 

segunda-feira, 18 de agosto de 2014

Ministrando...


COMUNICAÇÃO

Quando duas pessoas se comunicam, elas levam em conta não apenas o que é dito, mas também outros elementos da situação. Tais elementos são, por exemplo, o contexto, quem fala e com quem se fala, a imagem de si própria que cada uma das pessoas tem ou deseja transmitir para a outra, etc. Esses vários elementos da situação fazem parte do jogo social da linguagem.

comunicação ocorre quando interagimos com outras pessoas utilizando a linguagem. Mas o que é linguagem?

Linguagem é um processo comunicativo pelo qual as pessoas interagem entre si.

Linguagem verbal e não verbal

Além da linguagem verbal, cuja unidade básica é a palavra (falada ou escrita), existem também as linguagens não verbais, como a música, a dança, a mímica, a pintura, a fotografia, a escultura, etc., que possuem outros tipos de unidade – o gesto, o movimento, a imagem, etc. Há, ainda, as linguagens mistas, como as histórias em quadrinhos, o cinema, o teatro, e os programas de TV, que podem reunir diferentes linguagens, como o desenho,, a palavra, o figurino, a música, o cenário, etc.
Mais recentemente, com o aparecimento da informática, surgiu também a linguagem digital, que permite armazenar e transmitir informações em meios eletrônicos.
As pessoas  que participam do processo  de interação por meio da linguagem são chamadas de interlocutores.


Aquele que produz a linguagem – aquele que fala, que pinta, que compõe uma música, que  dança – é chamado de locutor, e aquele que recebe a linguagem é chamado de locutário. No processo de comunicação e interação, ambos são interlocutores.

CEREJA, Willian R., MAGALHÃES, Thereza C., Português e Linguagens : volume 1 / Willian Roberto Cereja, Thereza Cochar Magalhães. - 7. ed. reform. - São Paulo : Saraiva, 2010


sábado, 16 de agosto de 2014

Os pedaços de mim...

Fui Sabendo de Mim

Fui sabendo de mim
por aquilo que perdia

pedaços que saíram de mim
com o mistério de serem poucos
e valerem só quando os perdia

fui ficando
por umbrais
aquém do passo
que nunca ousei

eu vi
a árvore morta
e soube que mentia


 Mia Couto em Raiz de Orvalho e Outros Poemas






domingo, 10 de agosto de 2014

"Vejam vocês: margarida já mudou de cor..."


Canção da escuta

O sonho na prateleira
me olha com seu ar
de boneco quebrado.

Passo diante dele muitas vezes
e sorrimos um para o outro,
cúmplices de nossos desastres cotidianos.

Mas quando o pego no colo
(como às bonecas tão antigamente)
para avaliar se tem conserto
ou se ficará para sempre como está,
sinto sem estranheza
que dentro dele ainda bate
um pequeno tambor obstinado
e marca – timidamente –
um doce ritmo nos meus passos.


Lya Luft, em "Secreta mirada", 1997.

Tão eu


Canção da mirada secreta


Foram-se os amores que tive
ou me tiveram. Partiram
num cortejo silencioso e iluminado.
A solidão me ensina
a não acreditar na morte
nem demais na vida: cultivo
segredos num jardim
onde estamos eu, os sonhos idos,
os velhos amores e os seus recados,
e os olhos deles que ainda brilham
como pedras de cor entre as raízes.


 Lya Luft, em "Secreta mirada", 1997.











" A POÉTICA ROSEANA" Capítulo 5.6

5.6 Recursos de Linguagem


                                                                                 Buriti, buriti e a sempre-viva-dos-gerais que miúdo viça e enfeita: o mundo é mágico!
João Guimarães Rosa

           
            A construção verbal de Grande Sertão: Veredas constitui toda a beleza contida na obra. O autor se esmera e perfaz o espetáculo, em um processo de reinventiva da língua em que se mesclam o erudito, o popular e o sertanejo. o amalgama roseano funda uma nova linguagem que, inclusive, expressa a si mesma, sendo ela a forma e o conteúdo. Devido à potência dessa linguagem  criada pelo autor,  torna-se trabalhosa e  demorada a  análise de todos os recursos utilizados na
escrita de Grande Sertão: Veredas. Sendo assim, decidiu-se por sinalizar os mais significativos para a presente pesquisa.
            Na revolução linguística de Guimarães Rosa, destaca-se, entre outros, a renovação sintática, sobre o que a estudiosa Maria Betânia Diniz Ferreira, afirma:
na estruturação da sintaxe o autor faz emprego da síntese (concisão) redução e solidez para a escrita de muitas das frases. Há uma diversidade de períodos curtos, com predomínio de coordenação e justaposição de frases no percurso: [...] me alembro, meu é. Ver belo: o céu poente de sol, de tardinha, a roseia daquela cor. E lá é cimo alto: pintassilgo gosta daquelas friagens. Cantam que sim. Revejo. Flores pelos ventos desfeitas. Quando rezo penso nisso tudo. Em Santíssima Trindade. / A ver, Diadorim, a gente ia indo, nós dois, a cavalo, o campo cheirava, dez metros de chão em flor. (FERREIRA 2006, p. 30-34).
            É possível constatar, na obra, que Guimarães Rosa associa um número de orações, dentro de um período, sem utilizar conetivos, pronomes relativos ou preposições, optando pela forma justaposta. Através da influência  da linguagem oral e de um processo de associações de ideias, o autor revela uma preferência pela coordenação sobre a subordinação.
            Outro recurso utilizado pelo autor, e que singulariza a sua obra, são os neologismos. Conceitua-se o termo, de acordo com Domingos Paschoal Cegalla  como palavra ou expressão nova (2005, p. 607). Porém, o que se pode perceber que nesse processo, na obra Grande Sertão: Veredas, de acordo com Ferreira é que:
os neologismos não são criados por meio de significantes completamente novos, não se marcam como criações arbitrárias, independentes, dissociados das palavras já existentes na língua, mas sim, resultam da combinação lógica de palavras, para assim renovar o significante e o significado. (FERREIRA, 2006, p. 33).
                      Pode-se constatar esse procedimento do autor, ainda de acordo com os estudos de Ferreira em:
Com uso de prefixação
[...] me chamou  adeparte (reservadamene) [...]  /  [...] deerrados ( pelo rumo errado) [...]  /  [...] desviveu num átimo (morreu) [...]  /  [...] certa altura regrossa ( muito grossa) [...]  /  [...] sobredentro de minhas ideias ( bem por dentro) (grifos nossos).
Com uso de sufixação:
[...] assoviamzinho sutil (assovio pequeno) [...] / [...] daí quis assuntação (apurar em detalhes) [...] / [...] Essezinho, essezim desde que o entendimento alumiou ele (diminutivos do pronome demonstrativo esse) [...] / [...] os usares (hábitos) [...]  /  [...] Seria velhaçal (muito envelhecido) [...] (grifos nossos).
Com uso de  justaposição:
[...] não tinha almaviva de se ver (ninguém presente) [..,]  /  [...] Depô-depois (muito após) [...] / [...]Diadorim se maisfez, avançando (se adiantou) [...]  /  [...] que malamal aceitei (muito mal) [...]  /  [...] pé-pubo (pé com frieira) [...]  /  [...] era quase sonoite (um pouco escuro) [...] (grifos nossos).
Com uso de aglutinação
[...] adforma vinha na ignorância (a+de+forma = d forma que) [...]  /  [...] baleado à traição, o maldelazento (maldito, repugnante como se tivesse lepra) [...]  /  [...] nenhão (fusão de não com nenhum) [...]  /  [...] não faz vivalei em mim (não aplique a pena de morte) [...]  /  [...] nãostante (não obstante) [...] (grifos nossos).

            É consenso entre os leitores, a afirmação da dificuldade de entendimento da obra devido ao linguajar inovador e ao exotismo dos vocábulos. Faz-se necessária uma atenção especial no contexto da narrativa, para descobrir-se a significação de termos, tais como:
esse menino não dura, está no blimbilim (final da vida) [...] / [...] me aperreava os coscuvilhos (fofoca, mexerico) [...]  /  [...] nimpes nada eu não podia aceitar (reforço da negação) [...]  /  [...] pirlimpim pimpão (efeito de aliteração) [...] / [...] Diadorim me chamou, fomos caminhando no meio da queleleia do povo (barulheira, agitação) [...]  /  [...] aquilo sucrepa (abala-se) [...]  /  [...] didideia (pensamento ruim) [...] (grifos nossos). (ROSA, 2006).
            Pode-se perceber, nessa citação, que Guimarães Rosa pretendia estimular a imaginação do leitor, no ato da leitura. O escritor não hesitava em trocar a categoria das palavras, desde que o efeito expressivo de cada uma delas se tornasse mais significante em outra função gramatical.
            Outra particularidade, na obra, diz respeito à criatividade do autor quanto à escolha dos nomes e apelidos das personagens, alguns tão estranhos quanto cômicos:
Alarico Totõe, Borromeu, Doristino, Fafafa, Fonfrêdo, Guirigó, Jidião Guedes, Rotílio Manduca, Rosa’uarda, Sesfredo, , Sêo Vulpes, Sidurino Suzarte, Tipote, Tuscaninho Caramé, Zé-Zim, Quelemém, Nhô Maroto, Nhorinhá, Andalécio.(ROSA, 2006).
            Deve-se assinalar que alguns desses nomes eram comuns no interior de Minas Gerais, principalmente aqueles que apresentavam hibridações dos nomes dos pais ou parentes, como pode ser o caso Rosa’uarda, Sesfredo e Quelemém, e também, pela omissão de fonemas na pronúncia como pode ser o caso de Totõe, Nhô, Zé-Zim, entre outros. Os topônimos escolhidos pelo autor também eram bem singulares, como se comprova com esses exemplos retirados da obra:
Barbaranha Cererê Velho, Chapada do Covão, Chapada-da-Siriema-Correndo, Jalapão, Liso do Sussuarão, Os-Porcos, Sucruiú, Serra do Cafundó, Serra do deus-me-livre, Urubu, Vereda-da-Vaca-Mansa-de-Santa-Rita, Veredas Mortas, Vila da Pedra de Amolar, Tamanduá-Tão. (ROSA, 2006).
            Certamente, com o passar do tempo houve mudanças nesses nomes  o que  mereceu um comentário de Riobaldo: “Como é que podem remover uns nomes assim?¹ Nome de lugar onde alguém já nasceu  devia de estar  sagrado.” (2006, p.42)
            Muitos desses nomes, de pessoas e de lugares, reporta-se aos arcaísmos² que, segundo Cegalla, “são falares regionais que se apresentam de um modo antiquado” (2005, p. 80). Na obra Grande Sertão: Veredas esses também se configuram como recursos de linguagem,  utilizados pelo escritor, no processo de reconstrução da sua  linguagem. É interessante assinalar que alguns dos termos observados, na obra, ainda são usados por pessoas mais idosas  do interior de Minas Gerais:
[...]  ia  adjutorar   o padre  (ajudar) [...] / [...] A vida é só  brabeza  (braveza) [...] / [...] bobeia  minha (bobeira) [...] /  [...] bebedice de amor (bebedeira)  [...] / [...] fazia a mor bem descida (maior) [...] /  [...] Nanja não queira me alembar (de forma alguma e lembrar) [...] / [...] ossoso (ossudo) [...] / [...] uma serepente malina (serpente maligna) [...] / [...] a qualidade do sofrente (sofredor) [...] Oséquio feito [...]  /  [...] Tomém peço licença, sôs chefes. [...] / Assim vós prazido, chefe. [...] / por esquipático mesmo no simples [...] / [...] por osséquio, o senhor doutor [...] / (ROSA, 2006) – “Ossenhor utúrge, mestre, a gente vinhemos, no graminhá... O senhor utúrge...” (ROSA, 2006, p. 385) (grifos nossos).




¹ Mesmo nos dias atuais, ainda consta existirem nomes diferentes, tais como esses, na região de Pará de Minas:  Muquém, Cova d’Anta, Colombo do Gaia, Pindaíba, entre outros.
²Queremos, entretanto, ressaltar que a estranheza causada pela leitura de um texto rosiano, nem sempre fica por conta dos neologismos e alterações no léxico. Muitas palavras usadas são de uso corrente no ambiente a que se refere o texto, embora estranhas ao linguajar a que está habituado o leitor. Muitas expressões criadas pela necessidade e conveniência do usuário e também muitas expressões arcaicas de uso comum na região, embora estranhas à maioria da população das grandes cidades brasileiras. (Ruy Perini 2005 Espéculo. Revista de estudios literarios. Universidad Complutense de Madrid)

Lécia Freitas


sábado, 9 de agosto de 2014

Preferências


Lições

Não aprendi a colher a flor
sem esfacelar as pétalas.
Falta-me o dedo menino
de quem costura desfiladeiros.

Criança, eu sabia
suspender o tempo,
soterrar abismos
e nomear as estrelas.
Cresci,
perdi pontes,
esqueci sortilégios.

Careço da habilidade da onda,
hei-de aprender a carícia da brisa.

Trêmula, a haste
me pede
o adiar da noite.

Em véspera da dádiva,
a faca me recorda, no gume do beijo,
a aresta do adeus.

Não, não aprenderei
nunca a decepar flores.

Quem sabe, um dia,
eu, em mim, colha um jardim?


Mia Couto, no livro "Idades Cidades Divindades",

Lisboa, Caminho, 2007.



sexta-feira, 1 de agosto de 2014

"A POÉTICA ROSEANA" Capítulo 5.5.6

        (As personagens)

            Em um romance, as personagens devem ser construídas de modo que o leitor reconheça nelas, pessoas que povoam o mundo real, embora sejam habitantes de um mundo ficcional. Elas reproduzem as pessoas e criam uma realidade para o leitor.
            No texto de ficção, as personagens que apresentam comportamento previsível são classificadas como personagens planas ou lineares, cuja definição só aparece uma vez em definitivo.
            Já a personagem redonda ou esférica é apresentada sob vários aspectos, é imprevisível como a própria vida. Seu comportamento imprevisível e suas características psicológicas são complexas e exigem uma análise mais profunda e atenta.
            Nas mais diversas narrativas sempre haverá as personagens protagonistas em torno das quais se desenrolam os fatos. Interagem com elas, as personagens secundárias e as mais diferentes espécies como as antagonistas, figurantes, etc.
            O escritor Guimarães Rosa idealizou, para povoar essa história, uma infinidade de personagens  que compõem o bando  de jagunços e os habitantes dos lugarejos “perdidos” no sertão. É uma tarefa “dificultosa” enumerá-los. Alguns, somente  citados, outros aparecem apenas em algumas ações.
             Entre os figurantes destacam-se o menino Guirigó, o cego Borromeu, os jagunços: Alaripe,  Siruiz e tantos... Entre as prostitutas, Nhorinhá, Miosótis e outras... A noiva, Otacília. Os estudiosos referem-se  à  Maria Mutema,  que matou o padre;  Selorico Mendes, o padrinho; Quelemém, o  guia espiritual.
            Os sub chefes  do bando: Sêo Candelário, Medeiro Vaz, Marcelino Pampa, Titão Passos  e finalmente Zé Bebelo. Riobaldo admirava todos eles, porém, por Zé Bebelo ele tinha amizade.  Foi seu professor, e depois, seu advogado de defesa no julgamento que o expulsou do sertão. Zé Bebelo voltou somente com a morte do Chefe Maior, Joca Ramiro, empenhado em  caçar os culpados. Para isso, Zé Bebelo se “arvora” de chefe e passa a comandar o bando, em que se encontra Riobaldo e Diadorim. Em certo momento, Riobaldo toma-lhe a chefia ao perceber seu enfraquecimento no comando.
             Entre os secundários de maior expressão, surge Joca Ramiro, pai de Diadorim, e comandante de todos os jagunços do “sertão das gerais” e redondezas. Trata-se de uma figura emblemática, é  querido por todos devido ao seu poder de discernimento e capacidade de “mando”. É morto à traição por Hermógenes, figura  associada ao Mal, por Riobaldo, e Ricardão seu comparsa. Eram odiados por muitos jagunços, mesmo antes da traição. Ambos são mortos durante combate, realizado como propósito de vingança.
            Durante o julgamento de Zé Bebelo dominado em um combate, Hermógenes e Ricardão, igualmente subchefes, exigiram  como sentença, a morte para ele. No entanto, Joca Ramiro decide ouvir alguns do bando que defendiam Zé Bebelo por considerarem que matar fora de combate configura assassinato e, portanto, eles eram  contra. O Chefe, Joca Ramiro, então ordena que, como sentença, Zé Bebelo vá-se embora do sertão, podendo voltar somente depois da morte do próprio Ramiro. Fica bem claro nessa passagem o código de honra dos jagunços. Assim percebe-se a preocupação de Guimarães Rosa com a verossimilhança na caracterização de seus personagens.
            Os protagonistas, Riobaldo e Diadorim,  apaixonam-se desde o primeiro momento em que se viram, ainda crianças, no porto do de-Janeiro. Diadorim, que se chamava Reinaldo, reservando o apelido somente para o amigo, representa a ambiguidade, sendo  considerada por Riobaldo  “o em silêncios”. Em diversas passagens percebe-se o seu amor por Riobaldo, porém ele nunca se declara, pois  acredita que antes de revelar seu segredo a Riobaldo e serem felizes, ele deve vingar a morte de Joca Ramiro, seu pai. Sua figura é sempre associada à neblina – “mas Diadorim é minha neblina” (2006, p.21) – e ao verde por causa dos “olhos verdes  semelhantes grandes, o lembrável das pestanas compridas” (2006, p.138). Reinaldo/Diadorim  era bonito de feições delicadas e passos curtos. Mostrou para o amigo, Riobaldo  as belezas naturais da região. Tinha ciúmes  dele com as outras mulheres e por isso demonstrava mau humor. Era valente, bom de briga de faca. Conseguiu seu intento de vingar a morte do pai matando Hermógenes, mas foi ferido mortalmente por ele  vindo a falecer. Seu segredo  revelado após sua morte o que leva Riobaldo ao desespero e a abandonar a jagunçagem.
            Riobaldo, o narrador, já velho, rememora os acontecimentos que marcaram sua vida. Do tempo que era jagunço e que amava o companheiro de armas, Diadorim, sem, no entanto, entender e aceitar aquele amor. Amor tão forte que foi determinante na decisão de ser jagunço. 
            Narra sua vida, a um senhor, na esperança de entender o que lhe aconteceu e, assim,  reconhecer a si próprio. “Diadorim? Nela pensa até hoje... E tantos anos já se passaram” (ROSA, 2006, 191). Seu maior dilema é a dúvida sobre a existência do Diabo e se teria feito um pacto com ele para conseguir vencer Hermógenes e  vingar a morte de Joca Ramiro, na intenção de  agradar Diadorim: “Pelo amor de seu pai, Joca Ramiro , eu agora matava e morria, se bem” (ROSA, 2006, p. 41). Ao  término de sua narração  conclui que não há diabo. O que existe é o Homem capaz de escrever a própria história rumo ao infinito.
            A análise dos elementos da narrativa no presente trabalho se justifica uma vez que foge aos parâmetros de uma narração tradicional. Entende-se que a composição desses elementos contribui para a estruturação da linguagem poética. A começar pelo título que propõe um sentido ambíguo, porém se analisar-se pelo aspecto poético  há uma indicação de plurissigno nas palavras. O Sertão como tal se apresenta, na obra, adquire inúmeras possibilidades de interpretação e significados.  Além disso, os dois pontos presentes no título sugerem que o sertão circunda as veredas uma vez que estão contidas nele. Essas veredas constituem  aquele espaço onde a vida se torna mais pujante. Devido à presença da água a natureza se manifesta com mais força e é onde as coisas acontecem. No mais tudo “é céu e chão”. Conforme o autor declara “o Sertão é misturado”, portanto, híbrido,  o que o torna , também, pleno de poeticidade.  
            O espaço roseano envolve e é envolvido com as vivências e emoções dos personagens. O espaço não se delimita e o autor  afirma: “O sertão é do tamanho do mundo.” (ROSA, 2006, p. 73). “Esses gerais são sem tamanho... O sertão está em toda parte”. (ROSA, 2006, p. 08).  Na narrativa o sertão se apresenta mutável e cíclico, como tudo na vida, em uma mobilidade labiríntica como a própria narrativa. Comprova-se com as diversas referências  ao movimento do vento, e das águas dos rios e da chuva. Além disso, durante os episódios em que o bando de jagunços se perde no sertão, tem-se a sensação de que o sertão se move, de que os lugares se movem.
            O tempo, da forma como é colocado na obra, com volteios, e mesmo a descontinuidade, tem relevância na narrativa, uma vez que  o autor utiliza dessa fragmentação para destacar as lembranças mais significativas de sua vida, sendo necessária a análise para o entendimento  da obra  em estudo.  Na narrativa de Riobaldo, o tempo encolhe e se dilata, de acordo com as suas memórias e com a indistinção espacial. Nesse sentido, o tempo configura-se como um dos elementos mais relevantes na composição da obra.
            As personagens contribuem, naturalmente, pois são elas que orquestram as ações e acontecimentos, favorecendo a linguagem poética. Na fabulação roseana, as personagens são caracterizadas a partir dos detalhes físicos em descrições pormenorizadas, com traços poéticos. Guimarães Rosa, sutilmente, através de indícios revela a feminilidade de Diadorim, ao longo da narrativa, como pode ser observado em  trechos como: Os olhos verdes, semelhantes grandes, o lembrável das compridas pestanas, a boca melhor bonita, o nariz fino, afiladinho” (ROSA, 2006, p.138). “Mas Diadorim sendo tão galante  moço, as feições finas caprichadas...não achavam nele jeito de macheza.” (ROSA, 2006, p. 159).
            Embora uma personagem ambígua,  Diadorim é a força que move e mantém  a narrativa, o elemento fabuloso da história de Riobaldo. É o ser que impulsiona Riobaldo em suas ações, que lhe incute a coragem. Por causa dele Riobaldo aprende tanto do amor quanto do ódio, e é ele que lhe infunde  a sensibilidade para perceber as belezas  das coisas simples.
            Finalmente, o narrador, que conta a história e revive a própria vida na tentativa de entender o que lhe aconteceu e os próprios sentimentos. Ele conta vários pequenos casos, que aludem às antigas narrativas orais, e que têm como conteúdo  a presença  gratuita do Mal. A dúvida sobre a existência ou não do Mal movimenta toda a história. Porém, Riobaldo questiona se o Mal existe por si mesmo, algo objetivo, ou se existe a dificuldade do homem em  discerni-lo do Bem.  Na narrativa ficcional, não há como elucidar  os conflitos  existenciais de Riobaldo, no que se refere à existência do Demônio, uma vez que fogem ao plano real. 
            A oralidade e a negação da lógica, presentes na narração, reforçam o aspecto poético da linguagem.