quinta-feira, 28 de abril de 2016

Meu mundo e as bastanças

            Quando eu era criança e morava em Onça de Pitangui, não tinha nada. A pobreza era extrema. Não sonhava, por desconhecer a existência de tanta coisa. Não sabia nem que havia outro mundo lá fora. Um sentimento que fincava, de ruim, era não ter mãe. Isso me diminuía muito na frente de outras pessoas. Fui crescendo assim, solta, como se sem raízes. A única raiz que sentia era a que me mantinha à terra. Talvez por isso ela se avolumou tanto, se fortaleceu tanto
          Nunca fui de ter amizades. Não as cultivava. Gostava da solidão, fosse dentro da igreja de lá; fosse no meio do mato, quando dava longos passeios, ou quando levava merenda pro meu pai , no roçado; fosse no pátio da escola vendo os campeonatos de “mariquinhas” das meninas mas velhas. Gostava mesmo era de ficar lendo, no sossego da sala de aula durante os recreios. Até que proibiram esta prática, não sei por quê. Isso me isolou ainda mais. Talvez pela incompreensão de normas injustas. Naquele tempo, não sabia sobre questionamentos. Aceitava-se o que fosse, dos mais velhos, dos mais poderosos.
            A reação à uma negativa, ou probição era buscar outras formas de sobreviver. E era assim que eu passava horas olhando as formigas, ou outros bichos miúdos no quintal, no mato. Gostava, sempre gostei, de ver e ouvir as galinhas. Gostava, sempre gostei, de ouvir os passarinhos e por isso passei a amar também o silêncio.
            Sempre tive predileção pelo matinhos, esses que nascem despretensiosos, humildes. Eu os via como muito importantes, no meu mundo particular, em que todas as coisas eram minhas. Embora ame  as árvores, e as respeite acima de tudo. Mas sei que elas pertencem a todos. Já os matinhos, por serem desprezados e passíveis de serem pisados, eu os adotava. Lá, naquele tempo, havia muita água. E eu andava, andava, até depois do curral, somente para ouvir o barulho delas. Havia um córrego cercado de goiabeiras e suas águas corriam cantando, burburinhando...tão cristalinas...tão frias...ainda hoje vejo, escuto, sinto... Tantos lugares que eu amo tanto, e ficava buscando semelhanças com outros lugares que via nos livros! Recriando as narrativas, na minha imaginação, na minha memória. Ainda faço isso. E fico pensando que ainda sou menina. 
           Quando falo dessas coisas, as pessoas me olham assustadas e dizem:   — Você é tão engraçada. Tem cada ideia! Mas foi assim que criei um mundo meu e isso me bastava. Era feliz, muito feliz, à minha maneira. Acredito que era muito rica. Continuo sendo, com minhas lembranças, com esse amor profundo que tenho pelas coisas da terra, principalmente, pela minha terra.
            Anos depois, quando já do lado de cá, descobri que existem outros mundos, dos quais nem todos fazem parte. Os critérios para se ter acesso, não os sei muito bem. Um mundo de  regalias que deveria ser de todos. No entanto, percebo que para fazer parte dele é preciso endurecer. É preciso, antes de tudo, deixar de amar o que me bastava, que sempre bastou, para ser feliz. Em muitos casos, acho que é preciso até deixar de ser feliz, em busca de uma pseudo felicidade. Porque os amantes de coisas simples, como eu, sabem que não é preciso ter para ser. Tão pouco nos basta.  Mais,  só se fosse para todos. E na verdade, nada nos pertence. Pode-se até fazer uso, mas não é de ninguém. Apenas o sentimento nos é dado.  Que se for do bem, vale a pena que se espalhe por aí, alegrando o mundinho de insetos e gravetos de menininhas que nunca cresceram.

Lécia Conceição de Freitas




segunda-feira, 25 de abril de 2016

Não pode haver paz sem luta


Não cabe em ti
A mordaça dos tiranos
O silêncio dos covardes
E a maldade de quem não sabe amar
Não cabe em ti
A brevidade dos sonhos
A fome do mundo
E a censura dos corpos
E por ser largo, longo, profundo
Expande-se
Feito terra
Espalha-se
Feito palha
Transpira-se
Feito sol
E Transborda
Feito vida
Ifadeyin Fakolade

domingo, 24 de abril de 2016

O que dizer de Manoel de Barros

No quintal a gente gostava de brincar com as palavras
mais do que de bicicleta.
Principalmente porque ninguém possuía bicicleta.
A gente brincava de palavras descomparadas. Tipo assim:
A céu tem três letras
O sol tem três letras
O inseto é maior.
O que parecia um despropósito
para nós não era despropósito.
Porque o inseto tem seis letras e o sol só tem três
logo o inseto é maior. (Aqui entrava a lógica?)
Meu irmão que era estudado falou quê lógica quê nada
Isso é um sofisma. A gente boiou no sofisma.
Ele disse que sofisma é risco n’água. Entendemos tudo.
Depois Cipriano falou:
Mais alto do que eu só Deus e os passarinhos.
A dúvida era saber se Deus também avoava
Ou se Ele está em toda parte como a mãe ensinava.
Cipriano era um indiozinho guató que aparecia no
quintal, nosso amigo. Ele obedecia a desordem.
Nisso apareceu meu avô.
Ele estava diferente e até jovial.
Contou-nos que tinha trocado o Ocaso dele por duas andorinhas.
A gente ficou admirado daquela troca.
Mas não chegamos a ver as andorinhas.
Outro dia a gente destampamos a cabeça do Cipriano.
Lá dentro só tinha árvore árvore árvore
Nenhuma ideia sequer.
Falaram que ele tinha predominâncias vegetais do que platônicas.
Isso era.


Manoel de Barros, em Memórias inventadas: a infância




sábado, 23 de abril de 2016

Falando sem saber...

...e perpetuando inverdades, e injustiças, e racismo.
Nos tempos da escravidão, os negros eram depreciados pela elite branca. Descritos como desorganizados, sujos, analfabetos, o negro passou a ser chamado também de preguiçoso. Símbolo do preconceito, a Ladeira da Preguiça, em Salvador, ganhou este nome por ter sido a via de acesso de mercadorias vindas do porto para a cidade, levadas em carretões puxados a boi e empurrados por escravos, onde do alto de seus casarões, ao verem os servos tomando fôlego para subir o local extremamente íngreme com sacos de muitos e muitos quilos nas costas, a "fina flor" da sociedade gritava: “Sobe, preguiça! sobe, preguiça!”.
O tempo passou e em 1960, o governo da Bahia optou por explorar o mito cultural da preguiça baiana. Nesta época, o turismo tinha como slogan a Bahia paradisíaca, para onde todos aqueles que não querem trabalhar deveriam ir, para onde os estressados deveriam ir. E até os dias atuais, a indústria do turismo segue perpetuando a máxima “quer descansar, vá à Bahia”.
Aqui a festa nunca termina e ninguém se preocupa com o tempo. Assim, a indústria do turismo aprendeu a tirar proveito do mito da preguiça baiana, lhe conferindo apelo tentador, mas pouco levando em conta que enquanto alguns dançam, outros cantam, enquanto muitos se bronzeiam à beira mar, outros servem bebidas e comidas, sob o sol imperdoável da Bahia.
Portanto, é uma ilusão pensar que por aqui ninguém gosta de trabalhar – até mesmo porque, para criar essa ilusão turística poderosa, capaz de atrair milhares de pessoas à Bahia, milhões de baianos trabalham duro.
Quando uma pessoa afirma que baiano é preguiçoso, mesmo acreditando tal ato ser inocente (e nunca é!), ela está reproduzindo esse perfil intencional e historicamente construído, reforçado pela mídia e por aqueles que nada conhecem da Bahia e de sua gente. Tal estereótipo jamais poderia ser benigno, é um conceito permeado de racismo, uma visão atrasada e rasa.
Homens, mulheres e crianças, açoitados pela escravidão, os negros eram os pés, braços e mãos da economia durante o Brasil Colônia. Chamado de “fôlego vivo”, a única função do negro escravo era tão somente trabalhar. Logo, do ponto de vista histórico e cultural, essa mítica aversão ao trabalho atribuída ao baiano não tem fundamento real algum.
Entre as seis maiores regiões metropolitanas do país, Salvador é recordista em trabalho informal. Em 2013, o desemprego na Grande Salvador aumentou mais de 54%, segundo o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE). E se falta emprego para o baiano, ele vai em busca de trabalho, daí a justificativa para o recorde em trabalho informal.
Segundo a tese de doutorado da antropóloga Elisete Zanlorenzi (USP), intitulada “O mito da preguiça baiana”, de 1998, vem da tradição africana o conceito de que o trabalho não é o foco principal da vida, de que trabalho e lazer não se opõem. “O que não significa que as pessoas não trabalhem. Ao contrário, trabalham muito, mas sem colocarem o trabalho como objetivo central da existência e cuidando muito das relações que ocorrem fora da esfera do trabalho”, diz a autora da pesquisa.
Se a Bahia é tão amada e exaltada, os baianos são pouco compreendidos. E muitas pessoas parecem querer conhecer somente a parte mais inculta e folclórica sobre nós, baianos... Com a devida licença poética do baiano e publicitário Nizan Guanaes, reafirmo: “Baianidade é enfrentar a dura vida de uma maneira que ela pareça menos dura e mais vida”.
por: Cathyanne Rodriguez

sexta-feira, 22 de abril de 2016

Abaixo o racismo e o preconceito

Yzalú - Mulheres Negras
Enquanto o couro do chicote cortava a carne, 
A dor metabolizada fortificava o caráter;
A colônia produziu muito mais que cativos,
Fez heroínas que pra não gerar escravos matavam os filhos;
Não fomos vencidas pela anulação social,
Sobrevivemos à ausência na novela, no comercial;
O sistema pode até me transformar em empregada,
Mas não pode me fazer raciocinar como criada;
Enquanto mulheres convencionais lutam contra o machismo,
As negras duelam pra vencer o machismo,
O preconceito, o racismo;
Lutam pra reverter o processo de aniquilação
Que encarcera afros descendentes em cubículos na prisão;
Não existe lei maria da penha que nos proteja,
Da violência de nos submeter aos cargos de limpeza;
De ler nos banheiros das faculdades hitleristas,
Fora macacos cotistas;
Pelo processo branqueador não sou a beleza padrão,
Mas na lei dos justos sou a personificação da determinação;
Navios negreiros e apelidos dados pelo escravizador
Falharam na missão de me dar complexo de inferior;
Não sou a subalterna que o senhorio crê que construiu,
Meu lugar não é nos calvários do brasil;
Se um dia eu tiver que me alistar no tráfico do morro,
É porque a lei áurea não passa de um texto morto;
Não precisa se esconder segurança,
Sei que cê tá me seguindo, pela minha feição, minha trança;
Sei que no seu curso de protetor de dono praia,
Ensinaram que as negras saem do mercado
Com produtos em baixo da saia;
Não quero um pote de manteiga ou um shampoo,
Quero frear o maquinário que me dá rodo e uru;
Fazer o meu povo entender que é inadmissível,
Se contentar com as bolsas estudantis do péssimo ensino;
Cansei de ver a minha gente nas estatísticas,
Das mães solteiras, detentas, diaristas.
O aço das novas correntes não aprisiona minha mente,
Não me compra e não me faz mostrar os dentes;
Mulher negra não se acostume com termo depreciativo,
Não é melhor ter cabelo liso, nariz fino;
Nossos traços faciais são como letras de um documento,
Que mantém vivo o maior crime de todos os tempos;
Fique de pé pelos que no mar foram jogados,
Pelos corpos que nos pelourinhos foram descarnados.
Não deixe que te façam pensar que o nosso papel na pátria
É atrair gringo turista interpretando mulata;
Podem pagar menos pelos os mesmos serviços,
Atacar nossas religiões, acusar de feitiços;
Menosprezar a nossa contribuição para cultura brasileira,
Mas não podem arrancar o orgulho de nossa pele negra;
Refrão:
Mulheres negras são como mantas kevlar,
Preparadas pela vida para suportar;
O machismo, os tiros, o eurocentrismo,
Abalam mas não deixam nossos neurônios cativos.
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