quarta-feira, 13 de julho de 2016

INCORPÓREO

— Sempre gostei do silêncio! Embora goste muito de conversar, prezo o silêncio, ouvir o silêncio. Aqui, nesta parte do meu bairro quase não se ouve nenhum barulho. Ouço, às vezes a conversa de Davi, com seus personagens imaginários, neste início de vida. Quando chora, a avó vem com suas cantigas e ele se acalma. Há também, sempre, o som de um monomotor. Alguém faz acrobacias. E mesmo sendo algo da civilização,  agrada-me. Porque lembra minha infância, em Onça de Pitangui. Meu padrinho, toda vez que passava um avião, nesse caso bem alto,  falava-me de sua direção. Foram minhas primeiras lições de Geografia. Ele trabalhara na construção de Brasília e isso para mim era coisa de outro mundo! E o fato dele saber tanta coisa me encantava. Porém, o que mais me extasiava era saber que além das árvores, das águas, dos caminhos de minha terra, havia outros mundos, outros lugares, outras pessoas! E histórias! O barulho do mono daqui me lembra tudo isso, esse encantamento. E só por isso, por esse encantamento, vale a pena lembrar! 
— Um pouco mais longe, ouço os passarinhos. Naquela matinha, ali prá baixo, tem muito deles. De manhãzinha eles me acordam. Às vezes, quando não tenho muito trabalho, me dou ao luxo de ficar na cama só ouvindo. Está escutando a Fogo-apagou? Então...Se bem que o canto dela é triste...Alegres mesmo são as Maritacas. Passam em bando festivo...elas insistem em procurar goiabas no meu quintal, nesta época do ano. Laranjas e limas há, porque agora é tempo, mas as goiabas, tem mais nada. Os pardais também sempre fazem festa. Ficam dando pulinhos como se exercitando na limeira e no pé de limão. Olha lá... que monte. Eu amo tudo isso! Mesmo quando eles não me deixam ouvir o Fin-fin. Esse, você sabe,  lembra-me o meu pai! Sempre que eu ficava fazendo companhia para ele, ficávamos calados porque meu pai não era de muita conversa, e então ouvíamos o canto do Fin-fin. Foi meu pai que me falou dele , por isso tenho essa predileção. Que cor ele é? Sei não... conheço só de gravuras. O Fin-fin é muito arisco, mas só pelo canto é lindo! 
—Já reparou que o tempo está mudando? Sei não, talvez por este azul...O frio, parece foi embora...veja bem, há um outro ar! Já não há um prenúncio de primavera?...
— Aqui não, nunca tem outro tipo de barulho. À tarde, de vez em quando, ouço algum vizinho chegando com o carro. Mas é sempre assim: esse sossego. Eu gosto! Minha alma gosta. De vez em quando ela se rebuliça, mas na maior par de vezes, gosta. Isso porque, debaixo das superfícies as águas nunca são calmas, paradas, concorda? Posso ficar dias sem ver uma pessoa diferente, desconhecida, sempre os mesmos moradores. De vez em quando, aparece um vivente. Que te sorri e dá bom dia. E a gente responde cheio de sol, porque é raro encontrar alguém. Só mesmo o dono da padaria e esposa. Que perguntam como a gente está, puxam assunto... falam da beleza do ipê rosa da praça, todo florido. O chão tá “coalhadinho” de flor...uma belezura. A mullher pede a receita do paninho de crochê, essas coisas...
— E os dias passam...uma enfiada de dias...os anos. E a gente vai levando a vida assim, dessa maneira, suave. Aqui não tem tempo, nem espaço, para coisas ruins. A vida é muito branda do jeito que a gente pede a Deus. Amores? A gente cultiva, sim. A Ele, e a todas as suas coisas, e às pessoas que nos rodeiam. Felicidade é estado de espírito...

Lécia Freitas




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