quinta-feira, 9 de agosto de 2012

Preferências




CHEIRO DE SOLIDÃO
Déa Januzzi

             Um dia, ainda vou construir um asilo para velhos. Mas a primeira medida que vou tomar será achar um outro nome para asilo, que não  lembre morredouro, como proclamou Simone de Beauvoir, no livro Envelhecer, para definir um lugar onde os velhos são deixados para morrer.
            Não vou mudar só o nome, mas também a filosofia. Vou pintar as paredes do asilo com cores bem fortes, abusar dos amarelos, laranjas e vermelhos. Vou abolir os azulejos brancos, insípidos, frios como lápides. Vou colocar girassóis nas janelas. Vou plantar grama por toda a parte interna da casa, para que os velhos andem descalços e sintam a relva roçar os pés como cócegas.
           No asilo que vou construir, haverá quintal, jardins e árvores por todos os lados. As janelas estarão sempre abertas para o vento que vai entrar pelos cômodos, passear pelos cabelos dos idosos, levantar as saias e os chapéus, arejar os corações com o aroma das manhãs. Colocarei uma fonte luminosa em cada corredor.
            Nada de bingo e orações em excesso. Os idosos da minha comunidade vão pintar sóis ao despertar de cada dia, com os próprios pés, que serão mergulhados em baldes de tinta. Será como um escalda-pés de cores. Vou ungir os velhos com a minha fé num mundo novo. No meu asilo, que não terá esse nome, não permitirei capelas. Nada de missas demais, cânticos de qualquer igreja, com honrosa exceção para o canto gregoriano, pois os idosos precisam de asas para voar e não de sepulcros.
            Vou pintar o teto de azul e colocar estrelas fosforescentes para que eles durmam com os olhos nas constelações. Não haverá escuridão nem gemidos depois que as luzes se apagarem, mas o brilho das estrelas do teto, sob o ruído suave da fonte. Todos os idosos poderão ter um animal de estimação, um pássaro, uma tartaruga, um cão, um gato. O choro será livre, em nome dos filhos que os abandonaram sem deixar endereço. Haverá o dia de chorar pelos filhos que enterraram os pais vivos nos asilos. Nesse dia, todos os idosos poderão xingar, gritar, deixar toda a raiva sair para fora, como um mar revolto.
           Os almoços serão sempre festivos e a comida terá um sabor especial. Não dispensarei alho, cebola, manjericão, alecrim, sálvia, cheiro-verde, com gosto de viver, para que o paladar se torne cada vez mais apurado. O café da manhã será uma celebração. Amanhecer na velhice é mais que um privilégio, é festejar mais um dia de vida, mais uma dádiva, que será posta na mesa com o café com leite, pães feitos por Magui do Sítio do Sertãozinho, com ervas e boas intenções, além de iogurte, cereais, mel e frutas. O café da manhã vai durar uma eternidade. Será uma espécie de ritual, com músicas da nova era para despertar sentidos.
           Depois, haverá aulas de alongamento e todos irão para o jardim, tomar sol e brincar. Haverá até um quarto de brinquedos, pois os velhos se tornam crianças. É a idade  do desconhecimento, de falar e de fazer o que tiver vontade. No meu asilo, que não terá esse nome definitivamente, não será pecado envelhecer, ter rugas e cabelos brancos. Para isso, vou pedir ajuda aos contadores de história, aos Doutores da Alegria, aos Anjos da Guarda, aos terapeutas de Alexandria, aos psicólogos das oficinas de memória, aos mágicos, palhaços, para que se revezem no ofício de transmitir a vida.
           No meu asilo, que não terá esse nome, os velhos vão poder namorar, porque o sexo não é coisa de jovem. O desejo não envelhece nunca. Haverá praça de para o footing, com pipoca, algodão doce, e até um parque de diversões, com lago e patos. Haverá declamações de poemas longos, infindáveis.
           Os jovens farão de seus braços bengalas para os velhos, Juntos, eles caminharão pelas alamedas, serão companheiros nessa viagem pelo tempo de viver. O respeito será traduzido em abraços, rodas de conversas, música e até fogueiras nas noites frias de inverno. E, quem sabe, um copo de vinho tinto. Haverá óleos essenciais para massagens curativas.
           Cada morador dessa comunidade poderá levar  para os seus  aposentos as lembranças de antigas casas: porta retratos, quadros, cadeira de balanço, xícara, álbuns de fotos baús e tudo o que traduzir aconchego. Ninguém poderá destituir os mais velhos de seus pertences e recordações afetivas. Nessa comunidade, com certeza, eu levaria até a minha mãe, para morar no andar debaixo do meu sótão, bem junto de mim. Quando eu estiver lá em cima, escutarei o barulho da cadeira de balanço ranger ternura, exalar história e sabedoria por todas as frestas desse asilo, que não terá esse nome nem cheiro de solidão.

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