sexta-feira, 17 de janeiro de 2020
Como na primeira vez
Quando a gente apaixona pela primeira vez, na adolescência, quase sempre somos uns monstrengos, com aparelhos nos dentes, a voz esganiçada, sem nenhum estilo, e com o corpo ainda em formação. Dá uma tremedeira danada quando encontramos a pessoa amada.
O tremor, no entanto, não acontece tanto pela vergonha que temos de uma hipotética feiura e falta de jeito. Ele acontece, com certeza pela emoção, porque volta, mesmo quando somos adultas e com conhecimentos para melhorar uma coisa ou outra na aparência. E assim, pela vida afora. Sempre ficamos inseguras diante de um novo amor. Temos medo da rejeição, da não aprovação.
Mas quando o amor acontece, já tardiamente, é muito pior. Temos argumentos de sobra, sabedoria, conhecimento de mundo. Podemos conversar sobre quase tudo, e conhecemos muito dos segredos de alcova. A vergonha ficou lá atrás, quando entre paredes. Espera-se muitos gemidos e sussurros, beijos sem fim, champanha em curvas, mordidelas em lóbulos, línguas e bocas. E amor muito amor!
Mas o que fazer com as rugas, com a flacidez? Como disfarçar a falta de agilidade em acrobacias e posturas, próprias de um momento em que se espera superar amores passados, garantir o espaço. Alguns até valorizam inteligência, etc e tal., mas não se leva nada daquilo para debaixo de lençóis. E aí, vem o medo, a vergonha pelo tempo que passou, implacável, no próprio corpo, deixando marcas. e levando outras.
Nessa hora, diante do espelho, a frustração, quase leva a desistir, daquele deus, que apareceu numa espécie de milagre, uma vez que já não se esperava mais ninguém. Como disfarçar o tempo: não há mais brilho nos cabelos, não há elasticidade, não há curvas.
Ela lembra que passou a vida inteira sem se preocupar com isso, esperando placidamente os anos correrem. E agora este turbilhão de sentimentos a leva de volta a um frenesi, a um desvario e ela gostaria de ter uns anos a menos para poder aproveitar. Não é qualquer dia que se apaixona dessa forma, nem qualquer pessoa.
O sentimento do amor não é mais nem menos forte de acordo com a idade. O amor é uma dádiva, é uma possibilidade de uma vida toda, e quando acontece, temos que receber e sermos gratos.
No entanto, não há tempo de consertar nada antes de um possível encontro.
Mas, como sonegar um amor que diante de tanta emoção, que aflora qual fonte e escorre sobejamente, te inebria, e ao mesmo tempo te atormenta, tão vivo, tão real, e você fica o dia todo pensando naquilo, sentindo até o perfume dele, a textura daquela pele que você acariciou e da boca que quer beijar tantas vezes, com o mesmo frêmito que te faz arrepiar ainda hoje?
Como sonegar este amor que traz consigo, uma força incontida, que desarrumou a alma e a vida, carregando em seu dorso essa adolescência tardia, e que, apesar de tudo, traz também uma doçura, um carinho, que por vezes, você fecha os olhos e vai lá no fundo resgatar um sentimento que te faz sentir parte de tudo?
Como sonegar um amor que, depois de tanto tempo, ainda faz você desejar mãos vigorosas a percorrer curvas e pele num prazer que enlouquece e te retorna à vida?
Como sonegar um amor tão fundo, tão querido, tão precioso, talvez o último a te acompanhar pela vida afora?
Lécia de Freitas
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