No fundo do quintal de casa passava
um córrego com águas frias e cantantes. Não oferecia perigo, mas ainda assim eu
não me aventurava a entrar nele, porque como se afunilava a correnteza também
era mais forte. Antes de passar no quintal de minha vó, o córrego se espraiava
no lote que era do meu tio. Ali, sim, podia entrar. Rasinho, a
água só cobria os pés. Friinha, cristalina,
uma delícia. E ainda tinha as piabinhas que ficavam rodeando. Do outro lado do
lote, tinha um pé de jambelão, que eu adorava. O outro terreno era de outro tio
e ele deixava a gente plantar “a meia”. Na época da semeadura, eu ajudava meus
irmãos a plantar o milho e o feijão na mesma cova. Eles iam na frente com a enxada
fazendo a cova e eu atrás jogava as
sementes, e com o pé ajeitava a terra. Era um serviço que eu gostava. Também de
capinar os matinhos, quando o milho já tinha crescido.
Seguindo curso do córrego, no fim, havia muitas plantas nas margens cujas folhas
lambiam as águas. Suas flores eram brancas e cheirosas, acho que eram um tipo
de lírio. A queda da água gerava energia mas, tão pouca que as lâmpadas nos
postes, mais pareciam um tomate maduro, e só à noite. Com isso, a iluminação
era feita por meio de lamparinas a querosene. Tinham um cheiro característico.
A casa de minha avó era de pau-a–pique e, nas janelas de madeiras chanfradas,
bem rústicas, haviam frestas por onde entrava o vento e os fantasmas da noite lá de fora. A
chama da lamparina bamboleava ao sabor do vento fazendo as sombras dançarem o
que aumentava o medo. Eu queria sempre dormir no canto da cama de minha vó, mas
minha irmã mais velha não deixava.
A minha irmã era mais chegada no meu
irmão e como eu ainda era bem pequena não podia acompanhá-los nas brincadeiras
e aventuras. Isso me matava. Em época de chuva – naquele tempo, as estações
seguiam à risca o clima, e assim, na estação das águas chovia dia e noites a
fio – quando o córrego enchia a transbordar, minha vó fazia um angu bem duro
que eles colocavam no jequi para pegar peixes. Eu não podia ir junto mas ficava
feliz quando retornavam com um monte de piabas e bagres. Isso diversificava
nossa alimentação. Muitos tipos de legumes e frutas só vim a conhecer depois de
adulta. Algumas frutas que eu conheci nas minhas andanças pelo mato nunca mais
vi.
Meu pai trabalhava roçando pastos e
eu levava merenda para ele na volta do dia. Andava léguas, sozinha, e nunca
tive medo. Talvez de alguma vaca parida, mas nem de cobra tinha medo. Não havia
perigo. Eu conseguia encontrar o meu pai
naquela imensidão observando a direção em que o mato estava mais, ou menos,
murcho. Eu adorava levar o café para o meu pai. Nesse momento, eu acreditava
que ele estava gostando de mim.
Nenhum de nós possuía calçados, e
como era muito frio os pés ressecavam e rachavam. Ficavam com uma aparência feia, parecendo
sujos, e os mais velhos diziam que era “piririca”. Assim, nos obrigavam a lavar
os pés com sabugo de milho e “cacos” de telha. Isso os feria até sangrar piorando
a situação. Para nós, isso era natural, não percebíamos como maldade.
Lembro com saudade de algumas coisa
daquela época: a escola, por exemplo. Amava a escola! Assim como amava, também,
as professoras, os meus cadernos, tudo. Os cadernos eram doados pelo governo.
Eram poucas folhas, encardidas, mesmo assim eu os amava. Não tinha livros, mas
eu lia todos da bilbioteca da escola. Até que proibiram porque disseram que eu
pecisava brincar no horário do recreio, e não podia ficar só lendo. Eu só faltava
de escola, para colher café, que era uma coisa que eu gostava demais. Sempre
inventava uma dor para minha vó deixar eu faltar. Minha vó era muito brava, mas
eu gostava dela. Ela me mimava muito e meus irmãos morriam de raiva por causa
disso. Mas de vez em quando, dava umas coças de vara, de “pelar”. E colocava de
castigo, sem poder ir brincar na rua.
Sempre gostei de ficar sozinha, de
andar sozinha, observando as coisas miúdas do caminho: os matos, os bichinhos,
as pedras...Sempre “viajei” nessas coisas. Ficava tempo olhando as formigas, os
outros insetos... por causa disso achavam que eu estava doente, com lombrigas.
E me davam uns remédios horrorosos.
Eu me refugiava sempre no meio do
mato. Às vezes, andava a cavalo, em pelo mesmo, por horas. Às vezes, subia em árvores,
enormes, frondosas, e assim me escondia. Deixava que me procurassem. Queria hoje,
também, subir em árvores e me esconder.
Lécia Freitas
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