Hoje é um dia importante para nós aqui em casa! É o meu aniversário. A casa está toda arrumada! Meus paninhos de renda branca enfeitam todos os móveis atestando minhas habilidades. O cheiro doce de lavanda se mistura com os aromas da cozinha: o bolo, os doces, os assados. Os filhos em volta da mesa farta, as vozes altas, alegres, um rindo das palhaçadas do outro... Eu observo e penso que devo dar graças a Deus!
Quando menina ficava me perguntando quanto tempo viveria. E vejo que vivi muito! Mas posso viver o mesmo tanto que não me darei por satisfeita. Viver é muito bom, apesar de tudo! Todavia, posso dizer que em alguns aspectos a vida foi cruel comigo. Muitas vezes vi pedaços meus se desfazerem, ficando pelo caminho. E eu tive que sobreviver sem eles. Meu coração ficou em muitas curvas. Minha alma perdeu contornos, perdeu cores. Por vezes, tive que me calar porque faltava-me a alegria para risadas escancaradas. Em outras o sorriso era fictício, enquanto o espírito se mantinha surdo. E muitas vezes faltaram-me as palavras quando a razão calava fundo, e assim, em silêncio, consegui construir muito de mim.
Por anos a fio, neguei minha condição de mulher por acreditar que a função de mãe deve estar sempre em primeiro lugar. Por muito tempo escondi-me do mundo, em um lugar só meu. Como uma armadura diante da crueza: era preciso! E assim a vida foi passando. Isso traz uma dor doída! Embora eu tenha ânimo para recomeçar quantas vezes, constato que os pedaços que caíram deixaram marcas que não vão se curar. Ainda que os recuperasse não se encaixam mais.
Entretanto, minha vontade de vida é muito maior. A cada dia limpo essas lágrimas e me dou a todas as emoções que sinto. Percebo, todos os dias, o tempo passando como um fio e todas as minhas lembranças lá cristalizadas, como um espólio, e isso é muito.
Não acumulei bens materiais ao longo. Não foi possível e nunca fui ambiciosa. Nem vaidosa. Do batom vermelho que uso hoje, eu digo que já não encanta. Pois numa boca com tantos vincos e sem sorrisos, serve apenas como uma bandeira para mostrar que sou mulher. Ainda!
Durante tanto tempo amei o amor ! Esperei-o em minha solidão, enquanto o escrevia em versos. Nem em sonhos prevariquei, certa de que talvez virgem ele me encontrasse. Mantive a pele em frescor de araçá e refiz a alma em cheiros de jasmim.
Hoje, visto-me de esperas. Teço o tempo com as estações, enquanto observo as circunstâncias. Aguardo, e paro o tempo porque sei que um dia ele virá. Virá e sei que me encontrará menina!
Que me venham os próximos vinte anos, ou minutos, ou instantes. Eu os viverei com a mesma intensidade e gratidão!
Lécia Freitas
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