Com licença poética
Quando nasci um anjo esbelto,
desses que tocam trombeta, anunciou:
vai carregar bandeira.
Cargo muito pesado pra mulher,
esta espécie ainda envergonhada.
Aceito os subterfúgios que me cabem,
sem precisar mentir.
Não sou feia que não possa casar,
acho o Rio de Janeiro uma beleza e
ora sim, ora não, creio em parto sem dor.
Mas o que sinto escrevo. Cumpro a sina.
Inauguro linhagens, fundo reinos
— dor não é amargura.
Minha tristeza não tem pedigree,
já a minha vontade de alegria,
sua raiz vai ao meu mil avô.
Vai ser coxo na vida é maldição pra homem.
Mulher é desdobrável. Eu sou.
Adélia Prado, em Bagagem
Achou esquisito, pois não vira o marido. Onde será
que estava? Com certeza se desencontraram e ele já estava em casa. Saiu da
avenida e dirigiu-se para o largo, um terreno bem grande de terra batida, onde
aconteciam os ensaios para o carnaval e onde acampavam os circos e parques que
costumam visitar cidades do interior. Era lugar ermo e mal iluminado mas
valia a pena por ser um atalho. Apertou a mãozinha do filho como buscando
coragem e apertou o passo. Olhando em volta receosa, de repente ela vê debaixo
do poste. Reconhece a jaqueta, o vulto debruçado em cima de outro vulto.
Respira fundo, nenhuma outra reação. Apenas pensa que outras também devem
gostar de bombons. Dirige-se para casa pensando que tem que terminar o bordado
ainda hoje.
Lécia Conceição de Freitas em Memórias
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