sábado, 27 de junho de 2015

A poeta mineira


Com licença poética

Quando nasci um anjo esbelto,
desses que tocam trombeta, anunciou:
vai carregar bandeira.
Cargo muito pesado pra mulher,
esta espécie ainda envergonhada.
Aceito os subterfúgios que me cabem,
sem precisar mentir.
Não sou feia que não possa casar,
acho o Rio de Janeiro uma beleza e
ora sim, ora não, creio em parto sem dor.
Mas o que sinto escrevo.  Cumpro a sina.
Inauguro linhagens, fundo reinos
— dor não é amargura.
Minha tristeza não tem pedigree,
já a minha vontade de alegria,
sua raiz vai ao meu mil avô.
Vai ser coxo na vida é maldição pra homem.
Mulher é desdobrável. Eu sou.

Adélia Prado, em Bagagem 



Achou esquisito, pois não vira o marido. Onde será que estava? Com certeza se desencontraram e ele já estava em casa. Saiu da avenida e dirigiu-se para o largo, um terreno bem grande de terra batida, onde aconteciam os ensaios para o carnaval e onde acampavam os circos e parques que costumam visitar cidades do interior. Era lugar ermo e mal iluminado mas valia a pena por ser um atalho. Apertou a mãozinha do filho como buscando coragem e apertou o passo. Olhando em volta receosa, de repente ela vê debaixo do poste. Reconhece a jaqueta, o vulto debruçado em cima de outro vulto. Respira fundo, nenhuma outra reação.  Apenas pensa que outras também devem gostar de bombons. Dirige-se para casa pensando que tem que terminar o bordado ainda hoje.

Lécia Conceição de Freitas em Memórias













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