quinta-feira, 6 de dezembro de 2012

Memórias: O Natal

A ideia que faço do Natal está muito presa às lembranças que tenho do tempo que era criança e morava em Onça de Pitangui. Eu morava com minha avó e meus irmãos e a pobreza era absoluta. Ainda assim foram os melhores Natais. Eu acreditava em Papai Noel. No entanto, eu achava que ele nunca deixara um presente pra ninguém lá em casa porque não tínhamos sapatos para deixar na janela. Ninguém tinha sapatos, então, não era uma coisa que fizesse falta. Na verdade todo mundo lá era muito pobre e não tinha esse negócio de ganhar presente. Portanto, as coisas não me faziam falta porque eu desconhecia a existência delas. Eu gostava do clima do Natal: o Presépio da igreja, nossa, era lindo! Na casa de minha tia, ocupava um quarto! Ela plantava arroz para fazer a grama verdinha, o espelho onde colocava os patinhos, ah, era tudo tão lindo, e eu era tão feliz! Era tempo de manga, de chuva, de férias, e embora eu, sempre, gostasse demais da escola, as férias era tempo de muitas brincadeiras. As professoras eram sempre as mesmas, mesmo assim havia uma expectativa sobre qual seria no próximo ano. Quando me tornei moça, essas expectativas se resumiam ao fato de, nessa noite, poder ficar no footing que havia na Rua Direita até mais tarde. Naquela época, a gente namorava só de olho, então, era um tempo a mais prá ver a pessoa de quem gostávamos. Os rapazes ficavam parados assim, um do lado do outro, e nós moças passávamos prá lá, prá cá. Ir à Missa do Galo era fundamental, à meia noite em ponto. Em outra época, quando meus filhos eram pequenos, lembro-me de que os Natais eram cheios de magia e de encantamento. Foi um tempo de extrema pobreza. Tanto em Betim, quanto aqui em Pará de Minas, a gente enganava a fome. Eu era muito magra e meus meninos tinham aquela palidez própria de quem tem deficiência de tudo. Ao se aproximar o Natal eu enfeitava a casa com galhos secos do jeito que dava e era uma festa. A felicidade era maior quando ganhávamos uma cesta básica. e se tinha um pacote de biscoito então!... Tínhamos um sofá na sala, então deitávamos os quatro e cantávamos a Jesus Salvador. Não havia nada bonito, mas eu os tinha meus, meus filhos, no meu colo, e eu era tão feliz! O tempo passou, eles cresceram, estão trabalhando, estudando, (até eu estudo!), as coisas melhoraram. Mas ledo engano, a mãe que pensa que os filhos são para sempre. Pelo menos, não no meu caso. As minhas ausências, tanto sofrimento, foram determinantes na formação da personalidade de meus filhos. Cresceram por si, sozinhos, porque eu tinha que trabalhar. Hoje eles querem o que não tiveram, as diversões, as alegrias... Não posso nem criticar. O amor, ah esse?!, ficou lá no sofá, no galho seco, no tempo que passou. Eu os criei do melhor jeito em que acreditava, no entanto, hoje a casa está enfeitada, até chiquezinha, mas eu, eu estou sozinha. Com certeza, vou passar o Natal passeando pelos blogs. Sonhando, sonhando...

sexta-feira, 14 de setembro de 2012

CRUELDADE X CIVILIZAÇÃO

 Há alguns dias, assistindo ao noticiário local, tive a oportunidade de ver, espantada, algumas imagens da Festa do Frango realizada no Parque de Exposições. Espantada porque, quando falamos em maltrato de animais, como os que a gente vê pela mídia, nunca pensamos que pode estar tão perto. E os adultos ainda levam crianças, que ficam por ali assistindo práticas, à título de esporte, sei lá o quê. Na verdade aprendendo a serem covardes, cruéis. Eu fico tentando imaginar o sofrimento do animal naquela situação. Há o sofrimento físico devido aos tombos e a força que os peões empregam para subjugar o animal. Objetos que picam e furam, como esporas e ferrões, eu não vi, portanto, não posso afirmar que usam. Mas com certeza, os movimentos feitos pelo peão e pelo próprio animal devem provocar machucados e feridos. Há, também, o sofrimento psicológico, e esse a meu ver, é bem pior. Além de estarem ali num ambiente estranho, fora de seu ambiente natural, no meio de pessoas estranhas, com cheiros estranhos, com barulhos, muitas vezes, ensurdecedores, há a angústia por não reconhecerem a situação, o medo. Devem concordar comigo: é horrível a angústia diante do desconhecido. O medo, em qualquer circunstância. E por que motivo, essa demonstração de força, de pseudo inteligência diante de seres indefesos? Isso é covardia. Alguns dirão: é esporte. E argumentarão que é necessário um alvo móbil para determinadas práticas. Eu quero acreditar que tanto os pecuaristas quanto os promotores de tais eventos são capazes de inventar, criar algo, algum artefato em substituição aos animais para demonstrar a eficiência habilidades de seus peões. O irônico é que se perguntarem a qualquer um dos envolvidos nesses atos, responderão que gostam muito de animais. Infelizmente não há como mostrar à essas pessoas a crueldade de seus atos, pela própria ignorância de acharem que não estão fazendo nada errado Isso me faz lembrar Montey Roberts, um norte-americano, com sua história de vida e com seu método de doma sem dor. Alguém pode mencionar o grande número de animais sacrificados em nome da Ciência. Pelo menos há uma desculpa. Totalmente questionável, mas há a desculpa de ser pelo bem da Humanidade. Ah, mas isso traz dinheiro para Pará de Minas! Chegamos ao ponto. Constatei, tristemente, a mesma situação em Barretos, SP, quando lá estive por ocasião da maior Festa de Peões e Boiadeiros. Realmente, corre muito dinheiro... Cidade grande, com ares de civilizada e DINHEIRO. Não vou chegar à questão filosófica e química de que somos todos, humanos e animais – a natureza – , parte de um todo. Vou me ater ao fato de que com tais procedimentos revelamos a nossa verdadeira face ao retomarmos a selvageria, a barbárie – a besta humana.

quinta-feira, 13 de setembro de 2012

ANÁLISE DO CONTO URUPÊS DE MONTEIRO LOBATO

                                                         INTRODUÇÃO


           Este trabalho pretende fazer uma análise do conto Urupês, do livro do mesmo nome, do escritor Monteiro Lobato. Sintetiza, sobremaneira, o conteúdo do livro e dá ênfase ao contexto histórico e às razões pelas quais foi criado. Apresenta, por fim a mudança de opinião do próprio autor sobre a sua obra.

  O BRASIL DE MONTEIRO LOBATO

           Diante das transformações que aconteciam no mundo e dos graves e complexos problemas políticos e sociais existentes no Brasil, surge o Pré-Modernismo. O Pré-Modernismo não pode ser considerado como uma escola literária devido ao fato de que não há grupos de escritores seguindo a mesma linha temática ou traços literários. Na verdade, é um período de transição entre as três escolas anteriores e a ruptura dos novos escritores com aquelas escolas. São considerados pré modernistas alguns escritores cujas obras destoam de nossa produção literária do início de século. Esta refletia uma mentalidade artística ainda ligada ao século XIX, na qual os ecos do Realismo-Naturalismo na prosa e do Parnasianismo-Simbolismo na poesia não contribuíam para criações significativas. Em vez disso, tínhamos uma literatura superficial, servilmente submissa a modelos europeus já superados, alienados das questões nacionais. (AMARAL, Emília et al. 2003, 214) A Europa vivia os preparativos para a primeira grande guerra enquanto no Brasil dominava a política conhecida como “café com leite”, onde os grandes fazendeiros, ou latifundiários dominavam o cenário nacional. No Nordeste eram grandes as agitações sociais com a Revolta de Canudos descrita por Euclides da Cunha em “Os Sertões, e no Rio de Janeiro a Revolta da Vacina liderada por Osvaldo Cruz e a Revolta da Chibata liderada por João Cândido. Esses e vários outros conflitos marcaram o início do século e colocaram em crise a República Velha. E assim, os escritores da época, inconformados com a situação do país, denunciam, através de suas obras, os problemas sociais em decorrência do descaso das autoridades governamentais vigentes. A realidade rural brasileira é exposta sem os traços idealizadores do Romantismo. O Brasil de ficção, com seus aspectos positivos da civilização urbana e belezas da Região Sul é substituído pelo Brasil real, com o sertão nordestino, o caboclo do interior e a realidade dos subúrbios. Monteiro Lobato apresenta a obra Urupês que retrata os problemas sociais do interior paulista, na região do Vale do Paraíba, por meio da caricatura do caboclo sendo essa a temática central. Lobato faz uma literatura de advertência, sob a ótica da caricatura, denunciando a miséria campesina e buscando uma sociedade moderna. Ele expõe a realidade do homem do campo, com a sua miséria, sem o idealismo do Romantismo. (CAMPEDELLI, Samira Youssef; SOUZA, Jésus Barbosa, 2002, 196). O tempo pode ser considerado como sendo as duas primeiras décadas do século XX, sendo esse o tempo do autor. Há uma cronologia quando o autor lembra Tomé de Sousa e o carregamento de 400 degredados e uns tantos Jesuítas, o Grito de Dom Pedro I, o Decreto da Princesa Isabel, à 13 de Maio e a Proclamação da República em 15 de Novembro porém, esse tempo é psicológico. O espaço é o interior de São Paulo, sendo a cidade de Itaoca mencionada no texto. O conto é escrito na terceira pessoa. A linguagem é coloquial e direta, alguns termos mais rebuscados ou refinados requerem uma consulta ao dicionário. Não se pode dizer ou afirmar que o vocabulário é regional ou se próprio da época. Algumas passagens exigem um conhecimento histórico e literário mais apurado. O autor usa a metonímia, por exemplo em “ E que feias se hão de entrever as caipirinhas cor de jambo de Fagundes Varela! E que chambões e sôrnas os Perís de calça, camisa e faca à cinta!” “Compendia-os um Chernoviz não escrito”. “Quando em princípios da Presidência Hermes andou na balha um recenseamento a Offenbach [...].” O conto Urupês que dá nome ao livro de Lobato, é do gênero descritivo e narrativo e faz uma critica a dois tipos brasileiros – o índio e o caboclo idealizados pelo Romantismo. Logo no início ao mencionar o personagem Peri, de Alencar, que o idealizou como protótipo da perfeição humana, o autor o contrapõe com o selvagem real, feio e brutesco, incapaz, moralmente, de amar Ceci, segundo os sertanistas modernos. Mesmo assim, foi grande a exploração do tema por diversos autores, até o “público bocejar de farto”. Para o autor, no entanto, o indianismo não morreu. Evoluiu ao se transformar em caboclismo, permanecendo com o mesmo estofo. Ele ironiza ao afirmar que o caboclo é motivo de orgulho para a nação e expõe os motivos que o levam a pensar dessa forma enfatizando a vida cotidiana do caboclo: seus costumes, suas crenças e tradições. Lobato mostra Jeca Tatu como um indolente, passivo diante de todas as situações e adepto da lei do menor esforço. Põe-se de cócoras e permanece alheio a qualquer acontecimento capaz de mudar-lhe a vida. Sempre a repetir, modorramente, “que não paga a pena”. “O fato mais importante de sua vida é votar no governo” vota sem saber em quem nem porque, mas vota. Alienado, desconhece o sentimento de pátria e não tem sequer a noção do país em que vive. Jeca tira da natureza o que precisa para sobreviver. Alimentos e matéria-prima para a confecção de alguns utensílios que leva para a feira. Cultivado, só mesmo a mandioca que basta jogar um pedaço de rama na cova, sem mais cuidados. A cana, que adoça, basta torcer a pulso sobre a caneca do café. A tapera, onde mora, faz gargalhar o joão-de-barro de tão mal feita. A cama é uma esteira, não há mobília ou baús. A roupa, guarda-a no corpo, pois, só tem duas mudas. Como luxo, um banquinho de três pernas, suficiente para o equilíbrio. Com quatro pernas o obrigaria a nivelar o chão. Extremamente preguiçoso, não cuida da própria morada e acredita que como seus pais viveram assim não há necessidade de mudanças. No aspecto religioso, a manifestação se dá por meio das mais primitivas formas de superstição e magia. “A ideia de Deus e dos Santos torna-se Jeco-cêntrica. São os graúdos lá de cima , os coronéis celestes, debruçados no azul a espreitar-lhe a vidinha e intervir nela...”. “Daí o fatalismo. Se tudo movem os cordéis lá de cima, para que lutar, reagir? Deus quis.” A medicina anda de parelha com as mais absurdas crendices. A arte não se manifesta. “O caboclo é soturno”. No último parágrafo, em que Lobato faz uma exaltação da natureza brasileira em que tudo canta e dança, ele apresenta o Jeca Tatu como o único ser vivente que modorra silencioso no recesso das grotas. No meio de tudo, só ele não canta, não ri, não ama. Só ele, no meio de tanta vida, não vive.
 Obs.: de acordo com as pesquisas realizadas para a elaboração desse trabalho, foi apurado que depois de ler um documento de sanitaristas Lobato muda de opinião a respeito do que afirmara em seu livro. Depois de algum tempo conscientiza-se que o caboclo fica de cócoras não por indolência, mas por fraqueza motivada pela verminose. Tal imagem denotava debilidade na saúde básica, além da dificuldade de acesso ao estudo e à cultura. O escritor arrependeu-se e admitiu ter sido injusto. O matuto do interior não era preguiçoso geneticamente, porém se encontrava assim devido às doenças epidêmicas, do Brasil, das primeiras décadas do século XX. Entretanto, o rótulo do caboclo já estava sedimentado pela propagação de suas ideias e esse mesmo caboclo já havia assumido essa identidade, que era falsa.

 CONSIDERAÇÕES FINAIS

 A situação politica e social do mundo e do Brasil leva o autor a compor a sua obra onde ele retrata os problemas sociais da região do Vale do Paraíba. Ele cria o personagem Jeca Tatu para desmitificar um tipo brasileiro idealizado pelo Romantismo. Com o tempo o escritor percebe a injustiça, porém o rótulo já estava sedimentado.


 REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS AMARAL, Emília et al. Novas palavras: volume único : livro do professor / - 2.ed – São Paulo : FTD, 2003. CAMPEDELLI, Samira Youssef; SOUZA, Jésus Barbosa. Português – Literatura, Produção de Textos & Gramática – volume único – 3.ed. – São Paulo : Saraiva, 2002. CAMPOS, Flávio de. MIRANDA, Renan Garcia. A escrita de história : volume único – 1. Ed. – São Paulo :Escala Educacional, 2005. 


Trabalho  apresentado à disciplina Literatura Brasileira do Curso de Letras da Faculdade de Pará de Minas como requisito parcial para o 6º Período. Professora Drª. Ana Paula Ferreira

Créditos: 9,5

quarta-feira, 29 de agosto de 2012

Verbalizando

Hoje, Dia dos Pais, acho que vou me apropriar de todas as homenagens que estou vendo por aí. Esperei, sinceramente, ganhar pelo menos um abraço de parabéns. De qualquer pessoa. Mais ainda de meus filhos: Alberto, Luhara, João Vítor. Durante muito tempo da minha vida fui mais pai do que mãe. Era eu quem tomava as decisões, era eu quem tinha que prover o sustento, a segurança, tudo. Tanta coisa que nem me lembro, e o pior, não passou. Continuo sendo pai, embora não reconheçam, talvez porque eu não tenho a energia carinhosa que um pai deve ter. Esse meu papel ambíguo nunca foi reconhecido, muito menos valorizado. E eu não fui capaz de ser os dois: pai e mãe. Os meus filhos não me perdoam a abdicação, forçada, do meu papel de mãe. Eu tive que abdicar! Não havia tempo para ternura, delicadeza, etc.... O tempo era utilizado em como sobreviver. Para eles, no entanto, parece que não foi suficiente. E eu, eu estou sozinha. Essa solidão de agora é a pior que existe, A solidão do desamor, da indiferença. Mas como eu poderia usar a linguagem das Mães? Eu não tive mãe por isso a desconheço. Nunca a usei, sempre fui estrangeira a ela, a linguagem da ternura e da afeição. E pago caro por isso. Pensei que para demonstrar o meu amor seria bastante deixar de viver a minha vida. Não há aqui nenhum tipo de cobrança ou sacrifício. Foi uma opção minha. Isso é apenas uma tomada de posição. E não tem o que fazer, não há como voltar atrás e refazer. Não há como ter outros filhos, construir outra vida. Não há mais tempo, não para mim. Contudo, não os culpo. Como poderiam compreender um amor assim, no cotidiano, na crueza, no viés da vida? Seria preciso detalhar, entrever as atitudes, ler nas entrelinhas a história de um amor, que embora rude, é sem medidas, sem tamanho... Um amor que fica por aí no tempo, no espaço, porque ele existe e não tem como voltar para dentro de mim. Eu me tornei assim como uma tempestade que se forma e a chuva não cai. Como um rio que corre, mas não murmura. Como o vento que sopra, mas não canta. Como uma árvore que floresceu deu frutos, mas não dá mais nem sombra. Não tem seiva, não tem vida.

quinta-feira, 9 de agosto de 2012

Preferências




CHEIRO DE SOLIDÃO
Déa Januzzi

             Um dia, ainda vou construir um asilo para velhos. Mas a primeira medida que vou tomar será achar um outro nome para asilo, que não  lembre morredouro, como proclamou Simone de Beauvoir, no livro Envelhecer, para definir um lugar onde os velhos são deixados para morrer.
            Não vou mudar só o nome, mas também a filosofia. Vou pintar as paredes do asilo com cores bem fortes, abusar dos amarelos, laranjas e vermelhos. Vou abolir os azulejos brancos, insípidos, frios como lápides. Vou colocar girassóis nas janelas. Vou plantar grama por toda a parte interna da casa, para que os velhos andem descalços e sintam a relva roçar os pés como cócegas.
           No asilo que vou construir, haverá quintal, jardins e árvores por todos os lados. As janelas estarão sempre abertas para o vento que vai entrar pelos cômodos, passear pelos cabelos dos idosos, levantar as saias e os chapéus, arejar os corações com o aroma das manhãs. Colocarei uma fonte luminosa em cada corredor.
            Nada de bingo e orações em excesso. Os idosos da minha comunidade vão pintar sóis ao despertar de cada dia, com os próprios pés, que serão mergulhados em baldes de tinta. Será como um escalda-pés de cores. Vou ungir os velhos com a minha fé num mundo novo. No meu asilo, que não terá esse nome, não permitirei capelas. Nada de missas demais, cânticos de qualquer igreja, com honrosa exceção para o canto gregoriano, pois os idosos precisam de asas para voar e não de sepulcros.
            Vou pintar o teto de azul e colocar estrelas fosforescentes para que eles durmam com os olhos nas constelações. Não haverá escuridão nem gemidos depois que as luzes se apagarem, mas o brilho das estrelas do teto, sob o ruído suave da fonte. Todos os idosos poderão ter um animal de estimação, um pássaro, uma tartaruga, um cão, um gato. O choro será livre, em nome dos filhos que os abandonaram sem deixar endereço. Haverá o dia de chorar pelos filhos que enterraram os pais vivos nos asilos. Nesse dia, todos os idosos poderão xingar, gritar, deixar toda a raiva sair para fora, como um mar revolto.
           Os almoços serão sempre festivos e a comida terá um sabor especial. Não dispensarei alho, cebola, manjericão, alecrim, sálvia, cheiro-verde, com gosto de viver, para que o paladar se torne cada vez mais apurado. O café da manhã será uma celebração. Amanhecer na velhice é mais que um privilégio, é festejar mais um dia de vida, mais uma dádiva, que será posta na mesa com o café com leite, pães feitos por Magui do Sítio do Sertãozinho, com ervas e boas intenções, além de iogurte, cereais, mel e frutas. O café da manhã vai durar uma eternidade. Será uma espécie de ritual, com músicas da nova era para despertar sentidos.
           Depois, haverá aulas de alongamento e todos irão para o jardim, tomar sol e brincar. Haverá até um quarto de brinquedos, pois os velhos se tornam crianças. É a idade  do desconhecimento, de falar e de fazer o que tiver vontade. No meu asilo, que não terá esse nome definitivamente, não será pecado envelhecer, ter rugas e cabelos brancos. Para isso, vou pedir ajuda aos contadores de história, aos Doutores da Alegria, aos Anjos da Guarda, aos terapeutas de Alexandria, aos psicólogos das oficinas de memória, aos mágicos, palhaços, para que se revezem no ofício de transmitir a vida.
           No meu asilo, que não terá esse nome, os velhos vão poder namorar, porque o sexo não é coisa de jovem. O desejo não envelhece nunca. Haverá praça de para o footing, com pipoca, algodão doce, e até um parque de diversões, com lago e patos. Haverá declamações de poemas longos, infindáveis.
           Os jovens farão de seus braços bengalas para os velhos, Juntos, eles caminharão pelas alamedas, serão companheiros nessa viagem pelo tempo de viver. O respeito será traduzido em abraços, rodas de conversas, música e até fogueiras nas noites frias de inverno. E, quem sabe, um copo de vinho tinto. Haverá óleos essenciais para massagens curativas.
           Cada morador dessa comunidade poderá levar  para os seus  aposentos as lembranças de antigas casas: porta retratos, quadros, cadeira de balanço, xícara, álbuns de fotos baús e tudo o que traduzir aconchego. Ninguém poderá destituir os mais velhos de seus pertences e recordações afetivas. Nessa comunidade, com certeza, eu levaria até a minha mãe, para morar no andar debaixo do meu sótão, bem junto de mim. Quando eu estiver lá em cima, escutarei o barulho da cadeira de balanço ranger ternura, exalar história e sabedoria por todas as frestas desse asilo, que não terá esse nome nem cheiro de solidão.

domingo, 5 de agosto de 2012

Memórias

Lembranças de  Onça de Pitangui

           O sentido de Pátria é muito abrangente. O Brasil, por ser quase um continente,  com uma cultura vastíssima, é exemplo disso. Cada um vai associar o sentido de Pátria àquilo que mais lhe chama a atenção, que lhe é caro, que lhe emociona. Para mim, Pátria, entre outras coisas, é o berço,  a ancestralidade. Isso me leva, naturalmente, à minha terra, Onça de Pitangui. Não essa de agora, mas àquela de minhas lembranças. O ar, o cheiro, a essência são os mesmos, porém tudo está tão diferente. É certo que muita coisa mudou para melhor, no entanto, quando a vejo, busco rever o que está dentro de mim. Cada canto, cada detalhe, tão vivos nas lembranças, e se procuro, para reavivar essas imagens, já não encontro.
           Havia um lugar, perto da Igreja Matriz, chamado "Pacheco". Era um pedaço da rua margeado de moitas de bambus, enormes, densos, onde a vista não alcançava além, só se via bambu.  No alto, eles se  encontravam impedindo a passagem da luz do sol o que tornava sombrio o lugar . Além disso, numa das extremidades havia um córrego. Passava ali nos fundos da casa do Senhor Godofredo e Dona Cecília,  parentes meus. No quintal do Senhor Godofredo tinha um pé de laranja côca, as mais gostosas que já vi. Ele sempre dava as laranjas, mas era um problema para apanhar porque ele não deixava, de jeito nenhum, bater com a vara nos galhos. Essa variedade de laranja tem muitos espinhos e não tinha como  subir no pé, então, era complicado. Depois, o córrego entrava nos terrenos do Senhor Gumercindo, meu tio-avô, e pai do Geraldo, dono da Churrascaria Santa Cruz. O barulho da água era lindo mas isso tornava o lugar frio e úmido. Quando ventava, as folhas  faziam  um barulho, sussurrante que nunca mais ouvi em lugar algum. Para mim, esse era um lugar mágico. Eu não me aventurava passar por ele, sozinha, qualquer que fosse a hora do dia. E mesmo com alguém, eu andava olhando para trás morrendo de medo. Era comum, ao longo do caminho, encontrarmos montes de folhas secas. A vontade de chutar era irresistível. Quase sempre havia uma pedra escondida debaixo das folhas. Brincadeiras de algum menino  que passara antes, certamente mais corajoso a ponto de parar para juntar as folhas. Do lado da Igreja, ao terminar os bambus, começavam as flores. Eram flores simples, não me lembro do nome. Nasciam sozinhas, em certa época do ano. Ah, eu gostava de vê-las assim, tantas, tantas, de todas as cores!
           
           Na última vez que eu fui lá havia apenas uma moita de bambu. Mais nada. Mais nada. A Serra, defronte a Igreja, ainda existe. Majestosa, porém frágil   diante do Homem que tudo aniquila. Ainda assim, enfrenta, com coragem, o progresso que vai chegando. A amplidão que, embora tão criança,  eu percebia do adro da Igreja quando  olhava para a serra,  ainda existe. Essa amplidão, que resume Onça de Pitangui, eu posso abrir os braços e alcançá-la, toda, inteira, tamanho é o meu sentimento, o meu amor.  


Lécia Conceição de Freitas

Boas Vindas

segunda-feira, 30 de julho de 2012

Verbalizando


Eu não sou uma pessoa noveleira. Eu vejo novelas somente quando estou em casa à noite. Nesses dias, de férias, estou tendo oportunidade de assistir o embate de Carminha e Rita. E, é claro, não estou gostando do modo como o autor está tramando a vingança da personagem no que diz respeito ao trabalho das empregadas domésticas. Se todo trabalho é digno, então por que o autor coloca esse trabalho como modo de vingança? Em uma de suas falas Rita diz à Carminha que ela é um traste, que não sabe fritar um ovo sequer. Na verdade não é fácil fritar um ovo. Um ovo bonito, estrelado, no ponto, não é para qualquer um. Todo mundo sabe que ser cozinheira, arrumadeira, dona de casa, enfim, não é fácil. Hoje há cursos de todo tipo para quem quer aprender e se especializar em qualquer uma dessas tarefas/profissões. Então do jeito que o autor coloca, eu acho que ele está diminuindo esse trabalho. E se alguém disser que as empregadas não são de confiança, kkkkkk: em todas as profissões existem pessoas não confiáveis. Realmente existem patroas que humilham, e muito, as empregadas, mas não é pelo trabalho que realizam: é porque são pessoas que se acham melhor que as outras. Pretensiosas, orgulhosas... coisas assim. O ser humano é tão insignificante!
           Eu já trabalhei em muitas casas. Tive patroas de todo tipo. Não me sinto menor por isso, pelo contrário. Eu me divirto quando me lembro de como as patroas e os filhos das patroas agiam comigo e com os outros empregados. Uma pobreza “de cabeça” de dar dó. De que adianta ter dinheiro? Limpar banheiro, desentupir vaso sanitário, esgoto de pia é nojento? Tem mau cheiro? Talvez ... Mas algum de vocês já sentiu o cheiro de um cadáver em decomposição? Pois é... Talvez os ricos pensem que só pobre dá mau cheiro. Ou, como diz o Padre Gabriel Bessa:"- tem gente que acredita que nem vai morrer! Mas a batata de todos está assando!"
           Ah, mas a Rita está pleiteando um quarto melhor para as colegas. Bobagem, o negócio é ser feliz. Tem gente que mora no luxo e nem por isso. Isso tem prá todo lado. Vejam só, em todas as escolas que conheço, existe a SALA DOS PROFESSORES. Eu não sei se acontece em todas as escolas, mas o fato é que as serviçais, quando podem, “comem” lá fora, junto com baldes e vassouras. Preconceito, discriminação tem prá todo lado e eu acho que todos temos algum. O que não pode acontecer é sermos dominados por ele.
           Eu, caros amigos do Face, sinto um prazer enorme quando consigo resolver um problema daqueles que citei lá atrás. Seja aqui em casa, ou na Creche onde eu trabalho e onde o serviço não pode parar porque tem dezenas de crianças para serem atendidas a tempo e hora. E eu sou pobre, mas sou limpa, com o nome limpo, etc. ect. E sou muito cheirosa. E não me importo por não ter dinheiro para comprar em lojas tipo O2, Casas Levi, lugares onde fui “quase” colocada pra fora. (Na loja Drops, meu filho foi convidado a sair, KKKKKK. Ô tristeza, a testa tá inchada de tanto chorar!)
           Voltando a falar sobre a novela: vingança já é uma coisa triste, desse jeito, então, é bem pior.

Preferências


Recomendo a todos que gostam, e precisam conviver com crianças, o livro "COMO AMAR UMA CRIANÇA", de Janusz Korczak . É um livro belo, sensível, perspicaz e pleno de amor. Korczak morreu em Treblinka, em 1942, junto com as 200 crianças do orfanato que ele dirigia em Varsóvia.
           ..."Você diz: "Meu filho."
          Quando , senão apenas durante a gravidez, você terá o direito de dizê-lo? A batida de um coração tão pequeno como o caroço de um pêssego faz eco no seu pulso. É a sua respiração que lhe fornece o oxigênio. Um sangue comum a você circula em ambos, e nenhuma destas gotas vermelhas sabe ainda se ela será sua ou dele, ou se, será derramada, será preciso que morra em sacrifício ao mistério da concepção e do nascimento. Este pedaço de pão que você está mastigando é material para a construção das pernas sobre as quais ele correrá , da pele que o recobrirá, dos olhos com os quais ele olhará o mundo, do cérebro onde o pensamento brilhará, das mãos que estenderá para você e do sorriso com o qual ele chamará "mamãe".
          Juntos vocês irão viver um momento decisivo; juntos sofrerão uma mesma dor. O despertador tocará: pronto.
          E vocês dirão ao mesmo tempo - ele: "Eu quero viver minha vida";e você "Viva a sua vida".
          Com poderosas contrações das suas entranhas você o expulsará sem se preocupar com o sofrimento dele, e ele abrirá o seu próprio caminho com força e decisão, também sem se preocupar com o sofrimento de sua mãe.
          Ato brutal.
          Na realidade, não. Você e ele executarão mil movimentos imperceptíveis, maravilhas de habilidade, de sutileza, a fim de que, tomando cada um a sua parte de vida, não tomem além do que é devido a cada um, segundo uma lei universal e eterna.
           - Meu filho.
           Não, nem nos meses de gravidez, nem nas horas de nascimento a criança não é sua..."


sábado, 28 de julho de 2012

Memórias

Minha Família, como não amar?!
Lécia Conceição de Freitas

- Alô, Liana?
- Oi, tá boa?
- Ah , eu não estou boa não. Quebrei um pau no ouvido.
- O quê? Como assim, você está surda?
- Não, quebrei um palito de fósforo no ouvido, estava coçando.
- Santíssimo Sacramento! E agora?
- Não sei não.
- Que foi, mãe? (Uma segunda voz no telefone).
- Sua tia quebrou um palito no ouvido.
- Vai ter que ir ao PA.
- Elaine falou que tem que ir ao PA.
- Fala com ela, pra ir se arrumando que eu vou passar para levá-la.(Uma terceira voz no telefone.)
- Não precisa, vou a pé.
- A gente se encontra lá então.
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- Será que é grave?
- Não é não, mãe
- E se o palito for para o cérebro?
- Que isso, mãe , não tem como!
-Como você sabe?
- Mãe, eu fiz Biologia, lembra ? Não tem como.
- A sua Biologia não sabe de nada. O palito vai andando lá dentro.
- Érica, não responde sua mãe!
- Viiiiiu, pai, viu. Vamos depressa então.
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No colégio:
- Alberto, sua tia ligou. É pra vocês irem embora. Sua mãe está no PA. Parece que é alguma coisa no cérebro.
- Ai meu Deus, vou avisar a Luhara!
- Luhara, a mãe está no PA. Deu alguma coisa no cérebro.
Um colega de sala está passando.
- Ô meu, aqui está a parte do meu trabalho. Não vai dar pra eu falar, a minha mãe está no PA, com alguma coisa no cérebro.
- Pô, cara, sinto muito. É grave?
- Tia Liana ligou, é pra gente ir ficar preparado porque se a mãe tiver que ir pra BH nós vamos pra casa dela.
- BH, por quê?
- Se tiver que operar...
- Ixe.
Outro colega:
- Entra aí, meu, vou levá-los de carro.
- Pô, cara, valeu.
- O que será que aconteceu com a mãe? Será que o véio apareceu e deu um pau nela?
-Cê  doido?! Deve ser derrame, ou aneurisma.
-Ixe.
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O colega chega na sala de aula:
- Ô turma, a mãe do Alberto está mal, no PA, está indo pra BH. Parece que está em coma.
- Nossa, vamos rezar um Pai Nosso! Coitado do Alberto e da Luhara!
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No PA:
- Todo mundo já chegou, menos a Lécia.
- Tá chegando, cadê o João?
- Vai saber...
- Como cê tá?
- Tô bem.
- Coitada, tá tão nervosa que não está dando fé de nada. Devia ter protegido o ouvido.
- De que, mãe?
- Da friagem.
- A mãe está pior que a tia Lécia, vai ficar doida qualquer hora.
O funcionário, do PA, vendo aquele tanto de gente:
- O que foi, algum acidente, é grave?
- Muito grave, minha irmã quebrou um palito deeeeesse tamanho no ouvido.
- Mas porque ela colocou um palito deeeeesse tamanho no ouvido?
- Prá coçar, o palito quebrou lá dentro.
- Nossa, que gente mais doida!
Depois de muito tempo e de muitas reclamações por causa da demora, chamaram a moribunda.
- Só pode um acompanhante, por favor.
- Assim não é possível, eu tenho direito, sou a irmã.
- Mãe, não convém, a sua pressão pode subir.
- Vai seu pai então.
- Acho que o papai não aguenta, nem eu.
- Os meninos não tem idade pra isso.
- Vai a Érica, ela  entende, é formada em Biologia!
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- E então doutora?
- Não tem nada aqui dentro.
- Mas não é possível, tem que ter!
- A médica lança um olhar furibundo e diz:
- Não tem nada aqui, a paciente está ótima e vocês podem ir embora.
- Mas não vai receitar nada?
- Se ela sentir qualquer coisa durante a noite, amanhã ela pode voltar.
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- Por isso que este país não vai prá frente, tinha que encaminhar pra BH, fazer um exame, talvez precise de cirurgia. Depois a Lécia morre com isso no cérebro, quero ver de quem vai ser a culpa.
- Calma, mãe.
E vão todos embora, frustradíssimos.
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- Qualquer coisa, vocês podem ligar,
- Não é melhor ela dormir lá em casa?
- Não precisa,  muito obrigada! Vou dormir em casa mesmo, estou bem.
- Amanhã você não vai trabalhar. Fica em casa de repouso.

          No dia seguinte, ela aproveita o feriado fora de hora e dorme até mais tarde. Quando levanta vê que a filha já fez quase tudo antes de ir trabalhar. Com cuidado, pra não balançar demais o ouvido, começa a varrer a cozinha. Aí então, lá no cantinho ela vê um pedaço de palito de fósforo quebrado assim meio que na diagonal. Igual ao pedaço que ficou na sua mão quando quebrou ao coçar o ouvido. Ela pega a bolsa e vai para o trabalho.
- Ué, você não estava passando mal do ouvido?!
- Já melhorei, era labirintite.
Achou melhor nem mencionar a palavra palito, senão vai ser motivo de chacota em todas as festinhas familiares e no trabalho.

        Qual desculpa  deu pra família?
-Ah, o palito deve ter dissolvido lá dentro. Ponto de cirurgia 
não dissolve?... Então,  com tanta preocupação
 é bem possível.

Este texto eu escrevi, para fazer uma pequena
 homenagem à minha família que está 
sempre presente em todos os momentos 
de minha vida. O caso é verídico; eu dei 
apenas uma floreada para criar o sentido
 de humor. 
Espero que gostem!

A menina e sua mãe



       Naquela manhã, a mãe parecia mais preocupada. A menina aprendera a identificar os sinais. A mãe, calada, passava a mão, seguidamente, na nuca e depois na testa. Como se quisesse tirar dali alguma ideia, uma solução... Além disso, a menina sabia que não tinham nada para acabar com aquela fome que lhe roía por dentro, já àquela hora da manhã. Como ela gostaria de poder ajudar, resolver todos os problemas da mãe... Se pudesse tirar das páginas da revista todas aquelas comidas gostosas, para ela e os irmãos... Talvez sua mãe sorrisse... Ficava tão bonita quando sorria!...
        Ela ouve a voz do irmão mais velho:
        - Mãe, tô com fome...
       A mãe não responde, não tem o que responder.  A menina sente raiva do irmão. Será que ele não percebe o desespero, a angústia da mãe?  Ela permanece ali no canto brincando com o irmãozinho, enquanto observa a mãe.
       De repente, a mãe se aproxima, pega o filho menor enganchando-o no quadril e diz aos outros dois:
       - Vocês peguem os dois paus do varal e venham atrás de mim. A mãe sai, rapidamente, com os dois filhos atrás tentando acompanhar seus passos. Depois de algum tempo eles param e a mãe entrega o menor à filha, dizendo-lhe:
       - Você fique aqui tomando conta do seu irmão.
       - O  que a senhora vai fazer?
       - Ali tem um pé de abóbora. Vou ver se acho alguma. Menino, pegue o pau para me ajudar, diz ela dirigindo-se ao filho mais velho.
       - Eu não quero ajudar, tô com medo de cobra. Olha o tamanho do capim...
       - Se não ajudar não come. A menina ouve aquilo e pergunta:
       - Mãe, eu tô ajudando, posso comer a parte dele?
       - Olha lá mãe, ela tá me insultando...diz o filho mais velho, quase chorando.
      -Todo mundo vai comer. Mas tem que ajudar, diz a mãe, apaziguadora, enquanto vai cutucando o capim meloso para afugentar alguma cobra ou outro animal que pudesse molestar a ela ou ao filho.
       - Achei, grita a mãe, mostrando aos filhos uma abóbora verdinha!
     A filha olha, primeiro, o rosto da mãe. A mãe está sorrindo! Vê seu rosto iluminar-se de felicidade e, então, a menina sente vontade de abraçar aquela abóbora! Junto a esse sentimento vem a alegria por saber que logo vão comer coisa. Aproxima-se da mãe e diz:
       - Ô mãe, essa abóbora com arroz vai ficar uma delícia, não vai, mãe?
      - A gente come a abóbora hoje. Outro dia, a gente come o arroz, responde a mãe, enquanto voltam apressadamente. No caminho encontram o avô que está indo para o sítio onde trabalha.
       - Onde ocês tava, pergunta o avô?
      - Nós fomos procurar uma abóbora, no pé que eu tinha visto, outro dia. Olha ela aqui, responde a mãe, mostrando a abóbora.
       - Ô minha filha, isso não é abóbora, é uma cabaça, diz o avô.
       - Não fala isso não, pai, nós não temos nada para comer. Oh, meu Deus, desespera-se a mãe!
          Nesse momento , a menina sente tudo de uma vez, como se estivesse em um redemoinho. E agora, como vão fazer? Percebe a decepção, o sofrimento da mãe. Queria inverter os papéis, pegá-la no colo, acalmá-la... Como num sonho ouve a voz do avô...
     - Espia aqui, filha. Tô levando o farelo "pros" pintinhos do patrão. Você pega um pouco, coa e apura o fubá. Daí faz um fubá suado. Vai dar para matar a fome.
A menina ouve aquilo num misto de alegria e tristeza. No seu coração ela jura pra si mesma:
      - Um dia eu vou crescer, vou trabalhar, e então nunca mais vamos sentir fome.

 Pará de Minas, 26 de maio de 2010

Lécia Conceição de Freitas

OS ANJOS DA VIDA DA GENTE

      Quando o pai dos meus filhos resolveu ir embora (e essa foi a melhor coisa que ele poderia ter feito), ele chamou o dono de uma loja de móveis usados e vendeu tudo que era nosso. Tudo. Sem fogão, sem camas, até para os meninos. É claro que chorei, é claro que me desesperei. Mas foi só por um momento. Arregacei as mangas e comecei a luta. Um passo de cada vez. Um dia de cada vez. Não havia expectativas. Não havia esperanças.
        Trabalhei dia e noite, noite e dia. Não havia tempo para ser mãe. Perdi muito da infância e adolescência dos meninos. Na verdade eles também não viveram essas fases. Não teve como. Não eram permitidos sonhos. Toda a energia era gasta em sobreviver.
 Devo dizer que aos poucos foram aparecendo os anjos. Todos aqueles que me ajudaram. Não dá prá dizer quantos. Eu costumo brincar que se ganhasse na MegaSena e fosse retribuir a todos  não sobraria nada. Havia uma senhora, Clarice, que ficava esperando os meus filhos no caminho da escola e lhes dava merenda. Ela era empregada doméstica como eu porém, tinha uma situação financeira melhor que a minha. Foi dessa maneira que eles conheceram iogurte, biscoitos recheados, essas coisas que as crianças gostam. Não posso me esquecer de Vera, que sempre me dava pão, leite... Minhas primas Marília e Lilia... Tantas,  tantas...
 Meu cunhado deu-me duas camas onde dormíamos os quatro. Era apertado e eu queria pelo menos mais uma cama. Era época de Natal e havia uma promoção na cidade – Natal dos Sonhos – que bastava escrever uma cartinha para o Papai Noel e ser sorteado para ganhar e realizar o seu sonho.  Eu mandei "nnnnnnn" cartas na esperança de ganhar a cama. Não ganhei. Na época trabalhava de doméstica na casa do presidente da Ascipam – Associação do Comércio de Pará de Minas.
 No dia seguinte ao sorteio conversando com minha patroa sobre o sucesso da promoção, fiz um comentário a respeito de minha decepção por não ter conseguido ganhar. No domingo seguinte fui surpreendida com a chegada de meus patrões em minha casa. Com a cama, o colchão e até os lençóis. Digam-me, não são anjos?!

Lécia Conceição de Freitas

BOAS VINDAS