sábado, 30 de maio de 2015

O menino que carregava água na peneira


Tenho um livro sobre águas e meninos.
Gostei mais de um menino
que carregava água na peneira.

A mãe disse que carregar água na peneira

era o mesmo que roubar um vento e
sair correndo com ele para mostrar aos irmãos.

A mãe disse que era o mesmo

que catar espinhos na água.
O mesmo que criar peixes no bolso.

O menino era ligado em despropósitos.

Quis montar os alicerces
de uma casa sobre orvalhos.

A mãe reparou que o menino

gostava mais do vazio, do que do cheio.
Falava que vazios são maiores e até infinitos.

Com o tempo aquele menino

que era cismado e esquisito,
porque gostava de carregar água na peneira.

Com o tempo descobriu que

escrever seria o mesmo
que carregar água na peneira.

No escrever o menino viu

que era capaz de ser noviça,
monge ou mendigo ao mesmo tempo.

O menino aprendeu a usar as palavras.

Viu que podia fazer peraltagens com as palavras.
E começou a fazer peraltagens.

Foi capaz de modificar a tarde botando uma chuva nela.

O menino fazia prodígios.
Até fez uma pedra dar flor.

A mãe reparava o menino com ternura.

A mãe falou: Meu filho você vai ser poeta!
Você vai carregar água na peneira a vida toda.

Você vai encher os vazios

com as suas peraltagens,

e algumas pessoas vão te amar por seus despropósitos!




Manoel de Barros, em Exercícios de ser criança.

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