quarta-feira, 28 de setembro de 2016

DOS PEDAÇOS DE NÓS




            Imagina-se a saudade como silenciosa. Talvez porque remeta à solidão. Mas ela não é! Ela traz em si todos os barulhos do amor vivido. Ela carrega a inquietação própria dos amores intensos. Toda a barulheira que o outro fez para se instalar dentro de nós. E que nós permitimos porque a alma estava em festa. Varremos todos os nossos cantos com a vassoura mais fina. Tiramos móveis do lugar, trocamos alguns, esvaziamos velhas gavetas, cedendo lugar para as coisas novas. Tudo para encontrar bastante espaço para que o bem querer se acomodasse. Já imaginando que seria para sempre. E agora que ele se foi a saudade lembra tudo isso. E vai ser preciso refazer as coisas, recolocar tudo no lugar, os sentimentos. É por isso que dói tanto, que fere. Alguns sentimentos estão colados, grudados. E ao retirar a casca, sangra dolorosamente. E a alma grita de dor! Não há silêncio nesse grito!
            Durante o tempo deste amor, tentamos de todas as formas, buscar a alma do outro e colocá-la em nós. E nos esforçamos, exaustivamente, para colocar dentro dela a nossa própria essência. Mas se não era para ser não conseguimos. E quedamos, extenuados, vencidos. E a vida perde toda a graça. Sem o outro em nós perde-se o sentido, as coisas todas.
            É por isso que a alma se quebra. E ao remendar, colar os pedaços, sempre fica faltando um. Nunca ficamos por inteiro após um grande amor vivido. Vamos deixando pedaços de nós pelo caminho. Mas é preciso refazer. E amor tem que ser a dois. Amor sozinho é suicídio, e devemos matá-lo em nós, antes que nos mate. Isso, porém, é mais triste que a própria morte. Sentir um amor assim que um dia te fez tão feliz, que um dia fez você se sentir único no mundo, que você cuidou para que crescesse, e que agora você tem que sufocar, se quiser ser sano. E vai ser preciso muito cuidado, muita coragem, para acabar com esse sentir
            É preciso observar os escaninhos, para ver se tem alguma coisa escondida. Porque o coração é traiçoeiro, nessas coisas de amor, e pode ter guardado algo de propósito, para que o amor não se vá de todo. É preciso limpar as gavetas, todas, enquanto se espera novos mimos, novas lembranças do novo amor que virá. Pode ser que não tarde, pode ser que nunca venha. Porque, às vezes, cavamos tão fundo buscando lembranças, que não encontramos o caminho de volta. Porque, às vezes, a alma da gente dançou tanto em redor da alma do outro, que perde o rumo. Porque, às vezes estivemos tão entranhados pelo outro que perdemos a nós mesmos, a nossa essência. Nesses casos, é preciso esvaziar a tristeza e que não fique nenhum resquício. É urgente que se cale o sussurro do nome amado, abafar todos os sons É preciso chorar todas as lágrimas para que apague até o último sorriso que ainda é dele. E que lave a alma, que are a alma, para novas sementeiras.
            Pode ser que venha. É preciso que venha.

                                                                                                    Lécia Freitas







           

segunda-feira, 19 de setembro de 2016

NÃO ME ACHO



            O amor, não posso  dizer que veio sem avisar. Eu o busquei incessantemente. Eu o queria para o que desse e viesse. Até que ele apareceu, assim do nada. Apresentou-se e foi ficando. Tomou lugar dentro de mim, ocupou os espaços, os mais sagrados. Eu deixei que ele crescesse em mim como uma ideia. Seu nome, como mel lambente, grudou na minha língua, adocicando meus dias. E seu corpo se encaixou no meu. E porque foi crescendo, avolumando-se, escorre em mim. E não há o que fazer. Não sou mais eu. Se antes me achava em dois, agora, sem seu amor, já não me acho.
            Tudo que eu queria era tocar sua alma. E respirar o mesmo ar que ele. Ansiava aquelas mãos e minha vontade era tão latente que eu as imaginava, fortes, poderosas. Às vezes, eu pedia, e então ele me enviava imagens das mãos.
            Eu queria passar meus dedos, de leve, naquele rosto amado e beijar de meigo aqueles olhos. Fitava continuamente os seus olhos, que eu amava, buscando-me neles. Deixei meu corpo querer o dele. Os nossos cheiros combinavam como se se reconhecessem. Mesmo longe eu me lembrava de cada pedaço dele, das feições, de tudo. A minha vontade sempre era de sentir a barba na minha nuca, suçando. E no alto do meu querer eu desejava cada vez mais: ele nos meus braços.
            Como é que pode?! A cada dia gostava dele mais e mais! Como coisa feita! Como quebranto que não tem recurso e que nem eu mesma entendia. Tudo que queria era ficar ali, perto dele. Eu bebia a vida nos olhos dele. Eu imaginava respirar o ar que saía da boca dele. A vontade que eu tinha, mais das vezes, era ficar tão próximo dele para sentir o cheiro do suor. O cheiro dele que eu já adivinhava, tão grande era o meu querer.
            Tentava me enganar e dizia que era tudo loucura, passageiro. E me agarrava nessa ideia para não afundar. Como quando se está no fundo de um poço e se agarra às raízes. Eu pensava que poderia esquecer quando quisesse, que tudo era uma grande brincadeira. Mas, no fundo, lá naquele fundo, eu sabia que  gostava dele. De um jeito que não tinha salvação. E o que doía era saber que esse  amor  não vingaria. Não tinha como. Isso eu falava pro meu coração, eu repetia nas minhas tardes tediosas, nas minhas madrugadas insones. Falava para todas as coisas que me rodeavam, tentando tirar a imagem dele do meu pensamento. Porque todas as coisas que me rodeiam trazem no rótulo o nome dele. Tentava não pensar que gostava, mas no fundo já sabia que gostava para sempre. Isso se deu por causa do olhar dele que me puxava, me atraía, feito redemunho, feito cobra e passarinho.
            Se ele me amava? Sim ele me amava, posso dizer que me amava. Alguma coisa empurrava nós dois. Eu percebia o carinho em tudo que fazia por mim. Nas mensagens mais carinhosas que me enviava. As músicas, os vídeos. E a preocupação com meu bem estar, com minha saúde, se tinha dormido bem. Tudo ele perguntava, queria saber de tudo, da minha vida, de como tinha sido o meu dia. Eu  sentia isso nos olhos, no jeito que  me olhava. Na suas mãos, como me segurava – eu, um tesouro querido. Eu percebia a saudade dele, por minha pessoa, e o sorriso que dava, até com os olhos ele sorria, o corpo todo sorria! O meu também! E o que me dizia, as palavras. Palavra tem muita força. E as dele traziam a força do amor, que já era lei. E ele me dizia: minha querida!
            Quando penso nele a saudade vem tão grande como esse mundo. E eu sinto o meu pensamento passeando. Nele, sentindo todas as partes. É um sofrimento doído, sem tamanho, que traz em si todas as dores. Todos os sentimentos que já senti. Não há como viver sem estar grudada nele, nesse pensamento, nesse sentir. Mas a dor da saudade que me acompanha é um se acabar  em vida.
            Um amor tão grande assim... Mas a vida dispõe fatos  que não podemos ignorar, outras pessoas, outras verdades. Outras situações. E a cada encontro era uma dor sem volta. Até aquele dia.
            E eu sabia que era uma despedida, que ele não voltaria. Então eu o beijei. Beijei seus olhos, sua face, sua boca. Eu o beijei me doendo porque sabia seria a última lembrança dele. E me afastei devagar como se meus pés tivessem mil espinhos e me impedissem de andar. Na alma, a morte, que irá me acompanhar para todo o sempre.
            Às vezes, ele aparece, e me fala do desespero, da saudade, do amor que ainda sente. Eu não sei se fico alegre  ou triste. Somos os dois infelizes e tristes, terrivelmente tristes. Eu vejo que ele xinga palavrão lá na língua dele. Ele também não se conforma.
            Quando meu peito está apertado eu tenho vontade de gritar o nome dele. Pro mundo inteiro ouvir. Porque o nome dele permanece em mim – meu amor! E o pensamento nele está sempre escorrendo, feito água da fonte, que não cessa. Feito a alegria dos matos, quando a chuva cai. E feito essa tristeza que me escorre cara a fora. Meu amor só para mim. Tudo que eu queria. Com o meu pensamento eu abraço o corpo dele, - não é de verdade - mas eu sinto até os ossos, cada parte. O seu cheiro chega até meu coração. Isso me dá um prazer, me transforma, mas é doído de dar dó. Nessa hora, que penso nele, se morrer, não me importava.

                                                                                                            Lécia Freitas



                                                            Das flores que me enviava

domingo, 4 de setembro de 2016

SOBRE ESPERANÇA


Nesse tempo tenebroso e sombrio, tenho buscado conhecimento. Busco autores que podem me ajudar a entender o sentido da vida. Em todos os credos e até em quem nem crê no Divino, apenas na força de cada um, no vital. Apesar da diversidade de religiões e culturas a conclusão é a mesma.
Tenho visto falar muito na fragilidade humana. Mas eu não concordo. O ser humano não é frágil. Alguns podem sucumbir às vicissitudes mas a grande maioria resiste. A vida é poderosa! Ela insurge e ressurge em meio às piores condições, e teima. E perdura.
A morte não. A morte só existe quando conferimos a ela esse status. Mesmo quando alguém morre, o ser humano mantém esse alguém vivo dentro de si e nas coisas em redor, enquanto não se efetiva o fim. Mesmo quando termina o sofrimento pela perda, haverá um resquício de vida trazido pela saudade. Que pode ser eterna!
O poder da morte, então se estabelece diante da afirmativa que conferimos a ela. Isso pode ser comprovado quando matamos alguém dentro de nós, ainda que na realidade esse alguém esteja vivo. Ou quando matamos um sentimento. A morte existe somente quando queremos. A vida, não! A vida insiste mesmo quando não queremos.
De tudo que tenho lido e buscado explicações, entende-se que, mesmo os grandes estudiosos generalizam quanto aos sentimentos e sofrimentos do ser humano, diante da vida e da morte. Certamente estudaram, pesquisaram, observaram! Longe de mim desdizer tais atos. No entanto, cada ser é único, e a dor também. Mesmo aquelas pessoas que vivem um relacionamento poderoso em que as almas são gêmeas, e que a vida em ambos é uma só, a forma como veem e sentem o mundo não. Isso é único. Portanto, as verdades se multiplicam.
O que dá à vida, essa força? Não é o sentido. O sentido difere em cada um. Para mim, o que dá força à vida é a esperança. A vida acontece quando se tem esperança de alguma coisa. Isso é a motivação para a luta pela continuidade da vida. Mas a esperança só existe enquanto há vida. Uma depende da outra. A esperança sustenta a ânsia pela vida. É sempre a esperança em dias melhores. Mesmo aqueles que buscam a morte, imposta pela religião o fazem acreditando na vida eterna, no Paraíso. Somente quem perdeu a esperança, não acredita em mais nada.
A perda da esperança, acredito é o último estágio de sofrimento do ser humano. Durante nossa vida nós a perdemos em diversas situações. Mas ela pode ser renovada e reconquistada conforme a vida segue. E conforme o grau de motivação de vida de cada uma. No entanto, diante de determinadas perdas e frustações constantes a esperança vai minguando, vai secando, e no fim se resume ao instinto de sobrevivência. Até que sobreviver se torna um processo doloroso demais. Mas nem nesse caso a morte é mais forte. O que ocorre é que a morte foi permitida em vida, muito antes da própria morte. A vida acabou lá atrás. O ser se arrastava buscando algum vestígio da esperança que não existe mais.

Lécia Freitas



SAUDADE

Pablo Neruda

Saudade é solidão acompanhada,
é quando o amor ainda não foi embora,
mas o amado já…
Saudade é amar um passado que ainda não passou,
é recusar um presente que nos machuca,
é não ver o futuro que nos convida…
Saudade é sentir que existe o que não existe mais…
Saudade é o inferno dos que perderam,
é a dor dos que ficaram para trás,
é o gosto de morte na boca dos que continuam…
Só uma pessoa no mundo deseja sentir saudade:
aquela que nunca amou.
E esse é o maior dos sofrimentos:
não ter por quem sentir saudades,
passar pela vida e não viver.
O maior dos sofrimentos é nunca ter sofrido.
            Isso o mestre nos diz. Mas eu digo: -  diante disso - que me venha a morte, mas nunca mais uma dor como aquela.

Lécia Freitas