6.
A
PROSA, A POESIA E O AMOR
Na
elaboração desse última seção
pretendeu-se utilizar a mesma linguagem poética do autor e permitiu-se a
transparência da oralidade. Ao assumir tal
procedimento tenciona-se comprovar e destacar a expressividade
mencionada na proposta da pesquisa.
6.1 A história “milmaravilha...o amor de
ouro da flor”.
Guimarães
Rosa monta em seu cavalo e vai ao sertão. Nas trilhas e veredas observa, anota,
ouve lendas e “causos”. Coisas de mineiro. Dos rios trouxe o respeito e a
admiração. No olhar, gravado, o buriti, e na memória os sons das serras e chapadões: “o ronco do trovão, o
“chiim” dos grilos” (ROSA, 2006, p.29) e o canto dos pássaros todos. “O brilho
da lua, luã, a gargaragem da onça preta” (ROSA, 2006, p. 26) e “no colo o vento
verde”(ROSA, 2006, p. 290). Com sua linguagem encantada ele vai falar dessas
coisas e das lutas dos jagunços. Vai falar de Diadorim – a neblina. E do amor.
Amor que existiu só no olhar. Nunca o sertão viu um amor assim: Riobaldo e
Diadorim.
Riobaldo,
criança, encontra o Menino no Porto do
De-Janeiro e desde o primeiro instante,
ele é “preso” com aquele verde
olhar :
aí pois de repente, vi um menino,
encostado numa árvore e pitando um cigaro. Ali estava com um chapéu de couro,
de sujigola abaixada, e se ria para mim. [...] E era um menino bonito, claro, com a testa alta e os olhos
aos-grandes verdes. (ROSA, 2006, p. 102).
Vivem a primeira aventura de atravessar o rio São Francisco numa canoa. Diadorim lhe fala da coragem e
mostra no “mato da beira”, (ROSA, 2006, p. 103) a vida, as cores:
“as flores”...No alto eram muitas flores, subitamente vermelhas, e roxas
do mucunã. Um pássaro cantou. Nhambu? Não me esqueci de nada, o senhor vê. Aquele menino, como eu ia poder
delembrar? Eu queria que ele gostasse de
mim. (ROSA, 2006, p. 104).
Quantos
anos se passaram, mas Riobaldo não esquece! “Ah, Diadorim... E tantos anos já
se passaram.” (ROSA, 2006, p.191)
Na
procura de si mesmo, pelo sertão, Riobaldo reencontra o Menino, de nome
Reinaldo, que lhe confessa chamar-se Diadorim. Jagunço, vive para guerrear, mas
com os olhos – novamente os olhos grandes, verdes – prende Riobaldo, que o segue
para onde for:
e ele se chegou, eu do banco me levantei. Os olhos verdes,
semelhantes grandes, o lembrável das compridas pestanas, a boca melhor bonita,
o nariz fino afiladinho O menino me deu a mão: e o que a mão diz é o curto; às
vezes pode ser o mais adivinhado e conteúdo. E ele como sorriu. Digo ao senhor:
até hoje para mim está sorrindo. (ROSA, 2006, p. 138).
Riobaldo está ali por um acaso, não pensou em ser jagunço. Mas naquele
momento seu destino está sendo traçado. Ele reencontrou o Menino do Porto, encontrou
Reinaldo/Diadorim, e sabe que desde agora, para
sempre, suas vidas estão atadas:
e desde que ele apareceu, moço e
igual no portal, eu não podia mais, por meu próprio querer, ir me separar da
companhia dele, por lei nenhuma; podia? O que entendi em mim: direito como se,
no reencontrando àquela hora aquele Menino – Moço, eu tivesse acertado de
encontrar, para o todo sempre, as regências de uma alguma a minha família. Sem
peso e sem paz, sei, sim. Mas, assim como sendo, o amor podia vir mandado do
Dê? Desminto (ROSA, 2006, p. 109).
No
sertão, as paragens são lindas. Riobaldo, em meio à natureza vê Diadorim. Ambos
fazem parte daquele mundo. Percebem cada
elemento que o compõe.
Diadorim e eu, a gente dava
passeios... Mariposas passavam muitas, por entre as nossas caras, e besouros
graúdos esbarravam. Puxava uma brisbrisa. O ianso do vento revinha com o cheiro
de alguma chuva perto. E o chiim dos grilos ajuntava o campo aos quadrados. Por
mim, só, de minúcia não era capaz de me alembrar; mas a saudade me alembra. Que
se fosse hoje. Diadorim pôs o rastro dele para sempre em todas as quisquilhas
da natureza...Diadorim, duro sério, tão bonito, no relume das brasas. Quase que
a gente não abria a boca; mas era um delém que me tirava para ele – o
irremediável extenso da vida. (ROSA, 2006, p. 29).
A
vida seguia seu rumo, nos confins do sertão, e apesar das batalhas o amor era
forte, recrudescia. Riobaldo não atinava com o que lhe acontecia, mas queria
uma resposta de Diadorim. O desejo carnal tirava-lhe o sossego:
tudo turbulindo. Esperei o que vinha dele. De um acêso, de
mim eu sabia: o que compunha minha opinião era que eu, às loucas, gostasse de
Diadorim, e também, recesso dum modo, a raiva incerta, por ponto de não ser
possível dele gostar como queria, no honrado e no final. Ouvido meu retorcia a
voz dele. Que mesmo, no fim de tanta exaltação, meu amor inchou, de empapar todas
as folhagens, e eu ambicionando de pegar em Diadorim, carregar Diadorim nos
meus braços, beijar, as muitas demais vezes, sempre (ROSA, 2006, p.39).
E na
revelação do amor, talvez por já ser tão forte, não houve assombro, não houve
questões. Em Guararavacã, o aprazível lugar, onde a natureza se faz em festa
com o canto do joão-pobre e o vento que
fuchica as folhagens ali, e lá longe, na baixada do rio, balança o pendão branco das canabravas. Riobaldo
caminha por uma “vereda em capim te-te que verde”. (ROSA, 2006, p. 290)
e sente saudades, dessas que respondem ao vento. Saudades dos Gerais. “O remôo
do vento nas palmas dos buritis, quando ameaça tempestade. Alguém esquece isso?
O silêncio é verde.” (ROSA, 2006. p. 290) “Riobaldo ouve de dentro do mato o
barulho de um macuco que vem andando, “sarandando”, “macucando”, e se ri: “- Vigia este, Diadorim”. (ROSA, 2006, p.
290) Mas Diadorim não ouviu:
o nome de Diadorim, que eu tinha falado, permaneceu em mim. Me abracei com ele.
Mel se sente é todo lambente – Diadorim meu amor.... Como é que eu podia dizer
aquilo? Explico ao senhor: como se drede fosse para eu não ter vergonha maior,
o pensamento dele que em mim escorre figurava diferente, um Diadorim assim meio
singular, por fantasma, apartado por completo do viver comum, desmisturado de
todos, de todas as outras pessoas – como quando a chuva entre-onde-os-campos.
Um Diadorim só para mim. Tudo tem seus mistérios. Eu não sabia. Mas, com minha
mente, eu abraçava com meu corpo aquele Diadorim – que não era de verdade...
Aquilo me transformava, me fazia crescer dum modo, que doía e prazia. Aquela
hora, eu pudesse morrer, não me importava (ROSA, 2006, p. 290-291).
A partir daí, Riobaldo se deixa levar por esse amor, e ele sofre porque
quer “deslizar os dedos de leve
nos meigos olhos dele, ocultando, para não ter de tolerar de ver assim o
chamado, até que ponto esses olhos, sempre havendo, aquela beleza verde, me
adoecido, tão impossível...” (ROSA, 2006, p.46). [...] “abraçar aquele corpo
com as asas de todos os pássaros”. Riobaldo percebe, de repente esse amor descomum,
“com meu coração nos pés, por pisável; e dele o tempo todo eu tinha gostado.
Amor que amei – daí então acreditei.” (ROSA, 2006, p.238). Busca a sua presença,
mas Diadorim foge – ele é a “neblina”.
Riobaldo sente o amor cada vez mais forte. “Eu estava o tempo todo quase
sempre com Diadorim”. (ROSA, 2006,
p.18). Mas como?! Um igual. “De
que jeito eu podia amar um homem, meu de natureza igual, macho em suas roupas e
suas armas, espalhado rústico em suas ações?!” (ROSA, 2006, p. 495). Até que
reconhece o sentimento que lhe domina os sentidos. Riobaldo “sabe”: Diadorim
também o ama. Porém ele é “o em silêncios”. “De todos menos vi Diadorim: ele
era o em silêncios.” (ROSA, 2006, p. 464).
Diadorim
quer vencer Hermógenes e vingar o pai. Promete a Riobaldo a revelação de um
segredo depois que concluir o feito. E eles vão para as batalhas mais
sangrentas cumprir o “irremediável extenso da vida.” (ROSA, 2006, p. 29).
Riobaldo, sempre perto de Diadorim, busca-o com o olhar na empatia do querer:
mas eu gostava dele, dia a mais dia mais gostava. Diga o
senhor: como um feitiço? Isso. Feito coisa-feita. Era ele estar perto de mim, e
nada me faltava. Era ele fechar a cara e
estar tristonho, e eu perdia meu sossego. Era ele estar longe, e eu só nele
pensava. E eu mesmo não entendia então o que aquilo era? Sei que sim. Mas não.
E eu mesmo entender não queria. Acho que. Aquela meiguice, desigual que ele
sabia esconder o mais de sempre. E em mim a vontade de chegar todo próximo,
quase uma ânsia de sentir o cheiro do corpo dele, dos braços, que às vezes
adivinhei insensatamente (ROSA, 2006, p.146).
Uma promessa? Depois da vingança, quem
sabe? É o que se espera:
para meu sofrer, muito me lembro. Diadorim, todo formosura.
– “Riobaldo, escuta: vamos na estreitez deste meu passo...”- ele disse ; e de
medo não tremia, que era de amor – hoje sei. – “ ...Riobaldo, o cumprir de
nossa vingança vem perto... Daí, quando tudo estiver repago e trefeito, um
segredo , uma coisa vou contar a você...” (ROSA, 2006, p. 510).
Mas
o inimigo é forte, é cruel. Tem pacto com o Demo, dizem. No meio da rua, no
redemunho... a luta, quase não se vê. Tanta poeira. No fim Riobaldo tem a
confirmação: Diadorim tinha morrido:
pelas lágrimas fortes que esquentavam meu rosto e salgavam
minha boca, mas que frias já rolavam . Diadorim, Diadorim, oh, ah, meus
buritizais levados de verde... Burití, do ouro da flôr ...Diadorim – nú de tudo . E a Mulher diz : – A
Deus dada. Pobrezinha. (ROSA, 2006, p.598).
A dor estarrece. Ele, que é ela, se foi. O que fazer com todo o amor,
esse amor. O ser sucumbe à ausência:
eu estendi a mão para tocar naquele corpo, e estremeci,
retirando as mãos para trás, incendiável: abaixei meus olhos. E a Mulher
estendeu a toalha recobrindo as partes. Mas aqueles olhos eu beijei, e as
faces, a boca ....Eu não sabia por que nome chamar; eu exclamei me doendo: –
Meu amor! (ROSA, 2006, p. 599).
“Aqui,
a estória é acabada.” (ROSA, 2006, p. 600).
Guimarães
Rosa continua a contar: o caso dos “finalmente, do estado das coisas”.
A
obra Grande Sertão: Veredas torna-se
singular devido à linguagem, tão decantada e nem assim desvelada em todos os
seus mistérios. Nesse trabalho, entretanto, tencionou-se enfatizar a intensa
fala poética, principalmente na moldura do amor dos protagonistas. Vale
ressaltar que diante do extenso e complexidade da obra, o presente estudo
pretendeu privilegiar os fragmentos mais significativos e que se “alinhavavam”
no contexto do presente trabalho.