sábado, 30 de setembro de 2017

O CONHECIMENTO



            Devia ter uns 7 a 8 anos, e naquele tempo a vida era muito boa. Sem preocupações, e com o carinho  da avó e dos irmãos. Já não tinha mãe, mas a vida seguia.
            Sobre as coisas do mundo, alguém lhe dissera que se subisse até uma das serras, que limitavam sua visão, conseguiria tocar o céu com as mãos. E ela acreditava nisso, assim como acreditava que um dia, quando morresse, moraria lá, naquele azul.
            Entretanto, havia outros mistérios que martelavam na sua cabecinha. Já sabia que a terra era redonda, qua havia os mares e muitas outras coisas. Porém, não conseguia formar uma imagem do mundo por mais que tentasse. Imaginava a terra como uma bola enorme e que todos moravam lá dentro. Então, não conseguia entender a posição do céu. Como o céu era infinito se estava dentro da bola? Ficava horas pensando nisso. Não conseguia entender, e nem explicar a alguém o que não entendia.
            Sempre fora contemplativa! Gostava de ficar parada, olhando o serviço muído das formigas. Acompanhava a correição até o formigueiro e gostava de imaginar o que elas conversavam quando se cruzavam no caminho. Todas as formigas fazem isso! Talvez confirmem a localização exata. Tentava ajudar aquelas que carregavam um peso extra, mas isso nunca deu certo. A operária deixava o fardo e saia ziguezagueando pelo matinho ralo.
            Também ficava na beira do riachinho. Fitava uma gota d’água apenas e a seguia por entre as pedras roliças do fundo. Essas pedras eram como as teclas de um piano ou as cordas de uma viola. E as gotas de água cantavam, cantavam... quando passavam por elas. E ainda traziam umas luzinhas faiscantes, reflexo do sol! Tão bonito era seu mundo! Os sons, os cheiros, que haviam por lá, nunca mais encontrou.
            No quintal havia muitas bananeiras, e por isso era um local silencioso, fresco e gostoso de ficar. Ao lado, nascera um pé de alecrim. O alecrim do mato é muito usado nas roças para fazer vassouras. Pode ser usado para varrer o terreiro e o forno de barro. Esses fornos são aquecidos com lenha, que depois são varridas para que se possa introduzir as peças de lata com os biscoitos. Nos dias  que as biscoiteiras trabalham, a quantidade de cheiros que se exalam, realmente fica na nossa memória. O alecrim, ao ser queimado na quentura do forno, soltava um cheiro que se misturava ao das quitandas e isso não se consegue esquecer. Ela ainda não ouvira falar no Meu Pé de Laranja-lima, mas também amava o pé de alecrim. Nem tampouco conhecia os Jardins de Compenhague. Até hoje, em suas lembranças, acha que ele é  o mais lindo de sua vida.
            Um dia, depois da escola, estava deitada debaixo do pé de alecrim, sentindo todo a gostosura de estar ali, dentro da natureza que amava tanto: ouvindo os passarinhos na mangueira; observando o céu azulzinho e pensando até onde ia dar aquele céu. Onde ele terminaria? Do quê era feito? O que teria depois do azul?...
            De repente nasceu! Como se outra vida começasse ali, entendeu num átimo como se explicava aquele mistério! Sentiu vontade de abraçar o pé de alecrim! E sorria...sorria por fora, por dentro... Era toda sorriso! O mundo era em cima da bola, e não dentro! E o céu era o resto! O espaço de que tanto falavam!
            Entendeu o mar, os oceanos, tudo que a Geografia fala e que veria bem mais tarde, na escola.  Entendeu, então, que nunca conseguiria alcançar o céu com as mãos, por mais alta que fosse a serra.
            Isso foi há muito tempo, mais de cinquenta anos! No entanto, significou tanto que ainda guarda na memória a emoção da descoberta. Teve outras, ao longo da vida, mas nenhuma como essa! Compreendeu enfim, que nascemos a cada conhecimento que apreendemos. Que acumulamos essas emoções e vamos nos fazendo seres inteligentes. Porém, cada vez mais curiosos e sedentos de novas descobertas. É certo que todo ser humano deve ter bens materiais que irão dar um conforto, condições dignas de sobrevivência, etc. Contudo deve buscar o conhecimento.  No final das contas, é isso o que importa.


Lécia Freitas


terça-feira, 12 de setembro de 2017

O AMOR QUE EU PERDI

o monte de minutos
e de horas me admitem 
que esse amor eu perdi
perdi porque não o tenho
não o encontro onde deixei
não está na minha sala
nem aquece minha vida
está liso meu lençol
e triste confirmo
esse amor eu perdi
cheiro o mundo
deslacro gavetas
busco o rastro
firo a ânsia
latejo a alma
mas esse amor... eu perdi
firmo um riso
ensaio a dança
beijo outra boca
vivo a vida
e amo outro alguem
mas aquele amor eu perdi.

Lécia Freitas

domingo, 10 de setembro de 2017

MINHA VIDA DE MENINA

No fundo do quintal de casa passava um córrego com águas frias e cantantes. Não oferecia perigo, mas ainda assim eu não me aventurava a entrar nele, porque como se afunilava a correnteza também era mais forte. Antes de passar no quintal de minha vó, o córrego se espraiava no lote que era do meu tio. Ali, sim, podia entrar. Rasinho, a  água  só cobria os pés. Friinha, cristalina, uma delícia. E ainda tinha as piabinhas que ficavam rodeando. Do outro lado do lote, tinha um pé de jambelão, que eu adorava. O outro terreno era de outro tio e ele deixava a gente plantar “a meia”. Na época da semeadura, eu ajudava meus irmãos a plantar o milho e o feijão na mesma cova. Eles iam na frente com a enxada fazendo a cova e eu atrás jogava  as sementes, e com o pé ajeitava a terra. Era um serviço que eu gostava. Também de capinar os matinhos, quando o milho já tinha crescido.
Seguindo  curso do córrego, no  fim, havia muitas plantas nas margens cujas folhas lambiam as águas. Suas flores eram brancas e cheirosas, acho que eram um tipo de lírio. A queda da água gerava energia mas, tão pouca que as lâmpadas nos postes, mais pareciam um tomate maduro, e só à noite. Com isso, a iluminação era feita por meio de lamparinas a querosene. Tinham um cheiro característico. A casa de minha avó era de pau-a–pique e, nas janelas de madeiras chanfradas, bem rústicas, haviam frestas por onde entrava  o vento e os fantasmas da noite lá de fora. A chama da lamparina bamboleava ao sabor do vento fazendo as sombras dançarem o que aumentava o medo. Eu queria sempre dormir no canto da cama de minha vó, mas minha irmã mais velha não deixava.
A minha irmã era mais chegada no meu irmão e como eu ainda era bem pequena não podia acompanhá-los nas brincadeiras e aventuras. Isso me matava. Em época de chuva – naquele tempo, as estações seguiam à risca o clima, e assim, na estação das águas chovia dia e noites a fio – quando o córrego enchia a transbordar, minha vó fazia um angu bem duro que eles colocavam no jequi para pegar peixes. Eu não podia ir junto mas ficava feliz quando retornavam com um monte de piabas e bagres. Isso diversificava nossa alimentação. Muitos tipos de legumes e frutas só vim a conhecer depois de adulta. Algumas frutas que eu conheci nas minhas andanças pelo mato nunca mais vi. 
Meu pai trabalhava roçando pastos e eu levava merenda para ele na volta do dia. Andava léguas, sozinha, e nunca tive medo. Talvez de alguma vaca parida, mas nem de cobra tinha medo. Não havia perigo.  Eu conseguia encontrar o meu pai naquela imensidão observando a direção em que o mato estava mais, ou menos, murcho. Eu adorava levar o café para o meu pai. Nesse momento, eu acreditava que ele estava gostando de mim.
Nenhum de nós possuía calçados, e como era muito frio os pés ressecavam e rachavam.  Ficavam com uma aparência feia, parecendo sujos, e os mais velhos diziam que era “piririca”. Assim, nos obrigavam a lavar os pés com sabugo de milho e “cacos” de telha. Isso os feria até sangrar piorando a situação. Para nós, isso era natural, não percebíamos como maldade.
Lembro com saudade de algumas coisa daquela época: a escola, por exemplo. Amava a escola! Assim como amava, também, as professoras, os meus cadernos, tudo. Os cadernos eram doados pelo governo. Eram poucas folhas, encardidas, mesmo assim eu os amava. Não tinha livros, mas eu lia todos da bilbioteca da escola. Até que proibiram porque disseram que eu pecisava brincar no horário do recreio, e não podia ficar só lendo. Eu só faltava de escola, para colher café, que era uma coisa que eu gostava demais. Sempre inventava uma dor para minha vó deixar eu faltar. Minha vó era muito brava, mas eu gostava dela. Ela me mimava muito e meus irmãos morriam de raiva por causa disso. Mas de vez em quando, dava umas coças de vara, de “pelar”. E colocava de castigo, sem poder ir brincar na rua.
Sempre gostei de ficar sozinha, de andar sozinha, observando as coisas miúdas do caminho: os matos, os bichinhos, as pedras...Sempre “viajei” nessas coisas. Ficava tempo olhando as formigas, os outros insetos... por causa disso achavam que eu estava doente, com lombrigas. E me davam uns remédios horrorosos.

Eu me refugiava sempre no meio do mato. Às vezes, andava a cavalo, em pelo mesmo, por horas. Às vezes, subia em árvores, enormes, frondosas, e assim me escondia. Deixava que me procurassem. Queria hoje, também, subir em árvores e me esconder.
Lécia Freitas

sábado, 9 de setembro de 2017

Nada é eterno. Devemos saber disso. No entanto, o paradoxo nos diz que o que fica na memória é para sempre. É preciso acreditar para sermos sanos.

Lécia Freitas


Percebo em meus ossos que o inverno esta chegando. Mas podemosdizer que o tempo está meio doido. Ou as coisas todas. Porque vi uma Fogo-apagou carregando, no bico, um capim seco. Talvez ela tenha encontrado o amor bem antes. Não conseguiu esperar setembro. O amor tem pressa.

Lécia Freitas


O espírito aquieta-se, embora a alma dance em todas as cores, Os grilos entoam sua presença na canção da noite enquanto a lua sorri seu brilho de amante enamorada. E eu, eu estou feliz, pois que tenho um amor para mim.

Lécia Freitas


sexta-feira, 8 de setembro de 2017

Quando se retesa o arco em direção a um pretenso inimigo e uma águaviva pousa na ponta da flecha como um aviso de que o amor vem vindo, instaura-se a poesia. Mas ela não é assim tão explícita. É preciso percebê-la nas coisas pequenas e até nebulosas, escondidas: os sinais. É preciso captar-lhe a essência.

Lécia Freitas


Era uma forma de vida! E eu não fiz nada por ele. Apenas o amei com esse amor inútil dos humanos. Nunca irá se aquecer com o calorzinho do sol nas manhãs deliciosas de abril. Nunca irá se espreguiçar com a luz amarela do outono. Tampouco vai olhar pela vidraça, o frio deste inverno que se aviznha. Não se encantará com as borboletas pousadas nas Marias-sem-vergonha do meu quintal, seguindo-lhes o voo com o olhar enigmático tão próprio. Sequer nos surpreenderá com o andar elegante e silencioso dos felinos. Não nos cativrá com seu pelo lustroso e macio. Ou talvez tenha tudo isso (muito mais que eu, que não mereço, porque não sou pura nem doce), no céu dos gatinhos.

Lécia Freitas


O amor, o meu amor, faz-me ouvir o som da chuva sobre as folhas, e o murmúrio dos arroios entre as colinas, e a queda da neve no cume, e o canto dos céus e da terra!

Lécia Freitas


Amo o verbo! Meu ofício, minha paixão! Mas, às vezes, ele é tão dispensável...O silêncio tem força!

Lécia Freitas


Nossas vidas são repletas de gavetas. Vamos guardando coisas ao longo do tempo. Depositamos as memórias mais queridas e as retomamos sempre que sentimos falta delas para aquecer nossas almas. É nesses momentos que o sangue flui e nos renova. A vida readquire a graça e recobra os sentidos. A cada lembrança revivida, voltamos a viver, ainda que seja pela dor.

Lécia Freitas

Não ter mãe é ser solto no mundo, é não ter raízes, é não ter para onde voltar. É não ter ninguém acima, alguém que cuide de si. É quase não ter uma história, por que qlgumas coisassomente uma mãe pode contar. A minha história começa aonde minha memória alcança. Pratrasmente não existe. Não foi enterrado com minha mãe porque ela também não viveu. ficou no limbo. A minha responsabilidade pela vidasempre existiu, obrigatoriamente.

Lécia Freitas


Lentamente os passarinhos estão voltando. Eu os ouço acima da tormenta. Trazem na palheta variedade de cores a tingir meu riso, temeroso ainda. Perdoem-me o caminhar vacilante. Se não embarco logo neste trem azul. É que a pancada foi forte e não há como negar os destroços. Carregou viço e deixou opaco um mundo inteiro. Perdoem-me...ainda mais os inocentes! Vai ser preciso uma passarinhada a compor uma nova orquestra. Vai ser preciso uma aquarela inteira a desenhar na alma um novo sonho.

Lécia Freitas




A cada dia pegue o arado e faça a semeadura. Mas respeite a semente que está usando. O pão que plantar será tão doce quanto a doçura que tiver em seu ato. E tenha ciência que vai colher somente este pão. Não amaldiçoe a terra por colheita ingrata.

Lécia Freitas


terça-feira, 5 de setembro de 2017

Todos nós trazemos um pedido mudo que grita ensurdecidamente: faça-me sentir importante!

Lecia Freitas




Não se iguale por baixo. Não seja como aquele que lhe feriu. Não se detenha ante a ignomínia. Não se corrompa ante a indignidade. Não se espelhe em uma determinada classe. Você pode, sim, nascer no Brasil e ser uma pessoa de bem. Isso é para poucos, apenas os fortes.

Lécia Freitas






Essa saudade infinita que sinto de lugares que não visitei, de amigos que não abracei, de risos que não dei, de amores que eu temi ...essa saudade que deixa oca a minh'alma. A vida que não vivi, porque ocupada demais em apenas sobreviver, em viver para outros. Era minha missão, mas não era minha verdade.

Lécia Freitas




A nossa doação pode ser a nossa verdade. E não se deve nunca julgar a miséria humana. Não se deve desprezar o raso, o desconteúdo do outro. Quando se detém em excesso, ou mesmo o bastante, há uma falta para o outro. Ignorar isso, pode ser nossa ruína. 

Lécia Freitas





sexta-feira, 1 de setembro de 2017

AS VIAGENS



 Naquele tempo de miséria absoluta,em que tudo era tão difícil, e que eu só contava comigo mesma, no fundo eu sabia que precisa de ter alguma coisa. Mas não havia nada. Então, muitas vezes, eu me  refugiava em sonhos. Eram sonhos bobos, simples, com coisas que eu teria. E nem sempre eram coisas materiais. E eu não sonhava assim, de uma hora para outra, em meio a conversas ou situações. Eu pensava em algo, mas guardava aquilo para um momento em que pudesse me dedicar inteiramente ao pensamento. 
Raros momentos, que eu ficava sozinha sem desabar de cansada. E então eu revestia meu sonho com as cores mais lindas que eu tinha. Eram sonhos azuis, dourados... Com as figuras, que todo sonho querido deve ter: pessoas que eu amava, que eu gostaria de amar.  Eu viajava de um sonho a outro, vivendo as mesmas sensações que todos têm no real e que não me eram permitidas. Eu roubava da realidade, o que me era negado, absolutamente, de todas as formas. Eu conheci lugares, culturas, pessoas. Comi e bebi alimentos que nem sei se existem de verdade. Voei, muitas vezes, andei em barcos e em carruagens enfeitadas de flores, ou em carroças carregadas de grãos que eu plantei. Não fui rainha, nem princesa, mas tive fada madrinha. Como bruxa, cozinhava poções capazes de transformar qualquer realidade. Não fiz passeios intergaláticos, nem visitei a Idade Média ou qualquer outra. Mas fugi de dinossauros que destruíam o mundo horroroso que me esperava a cada fim de sonho. Morei em Onça de Pitangui, minha terra querida! Cavalguei em pelo, na praia do Planeta dos Macacos. Fui a shows do Pink Floyd, do Alceu Valença, da Elis Regina e do Roberto Carlos. Conheci gregos e troianos. E amei e fui amada com aquele amor que  todos sonhamos. Fui desejada, fui querida, e fui feliz, muitas vezes.
Isso tudo eu vivi, como se fora verdade, senti todas as emoções, consciente que era sonho. E principalmente, por ser sonho voltava a eles sempre que possível, e necessário, fosse o mesmo sonho, do ponto onde tinha parado, ou outro sonho. Inventava na hora ou deixava meu coração me levar. E foi assim que não endoideci. Foi assim que me mantive lúcida. Foi assim que sobrevivi.

Lécia Freitas




Na vida é preciso saber medir, saber dosar muitas coisas. Mas nunca aquilo que se doa. Nunca as nossas melhores emoções. Aquelas que nos fazem sentirmos vivos. Portanto, ao dar  o seu amor a alguém que seja o maior amor. Todo amor deve ser o maior, sem medidas. Porque quando se mede, torna-se miserável.


Lécia Freitas