2.1 O Poeta do Sertão
(O Autor)
Minha biografia, sobretudo minha biografia literária, não deveria ser
crucificada em anos. As
aventuras não têm tempo, não têm princípio nem fim. E meus livros são
aventuras: para mim, são minha maior aventura.
Escrevendo, descubro sempre um novo pedaço de infinito.
Vivo no infinito; o momento não conta. Vou lhe revelar um segredo: creio já
ter vivido uma vez. Nesta vida, também fui brasileiro e me chamava João Guimarães
Rosa. Quando escrevo, repito o que vivi antes. E para estas duas vidas um
léxico apenas não me é suficiente.
João Guimarães
Rosa
Apresentar a biografia de João Guimarães Rosa
constitui um processo minucioso de pesquisa.
A vida desse escritor é uma sucessão de acontecimentos que não poderiam
deixar de ser citados. No entanto, é imperioso que se faça uma filtração devido
à enorme quantidade de informações existentes. Para isso, selecionaram-se os
dados em dois sítios eletrônicos, devidamente citados nas referências
bibliográficas. A dificuldade está em
escolher e alinhavar de acordo com
a própria relevância e de
interesse para essa pesquisa. A história
desse grande escritor, médico e diplomata, contada por Elfi Küerten Fenske começa assim:
Joãozito, como era chamado pela família,
nasce em 27 de junho de 1908, com sobrenome de poeta: Rosa, filho de Florduardo.
Nasce no mesmo ano em que morre Machado de Assis, numa cidade chamada
Cordisburgo, que quer dizer o “burgo do coração” (FENSKE, 2013).
Sobre sua origem, Guimarães
Rosa declara a seu tradutor alemão, Günter Lorenz, em uma entrevista:
nasci em Cordisburgo, uma cidadezinha não muito
interessante, mas para mim, sim, de muita importância. Além disso, em Minas Gerais ; sou
mineiro. E isto sim é o importante, pois quando escrevo sempre me sinto
transportado para esse mundo: Cordisburgo. (ROSA apud FENSKE, 2013).
Guimarães
Rosa gostava de ficar sozinho. Nesses momentos, estudava Geografia e brincava
colecionando insetos. Desde pequeno, lia muito. Certa vez, disse que, quando
crescesse, escreveria “um pequeno tratado para meninos quietos”:
mas tempo bom de verdade, só começou com a conquista de algum isolamento,
com a segurança de poder fechar-me num quarto e trancar a porta. Deitar no chão
e imaginar estórias, poemas, romances, botando todo mundo conhecido como
personagem, misturando as melhores coisas vistas e ouvidas... (ROSA apud
FENSKE, 2013).
Desde que sai de seu vilarejo
natal, Cordisburgo, por
volta dos 10 anos de idade, para morar com os avós e assim estudar, em Belo Horizonte , Guimarães
Rosa não para mais:
Guimarães Rosa ingressou na Faculdade de Medicina de Belo Horizonte
(hoje Faculdade de Medicina da UFMG) com 17 anos incompletos. Em 1926, quando
cursava o 2º ano, pronunciou, no anfiteatro da Faculdade, diante do ataúde de
um estudante vitimado pela febre amarela, as palavras “As pessoas não morrem, ficam encantadas”, que, ouvidas na
ocasião por seus colegas Alysson de Abreu e Ismael de Faria, seriam repetidas,
41 anos depois, quando de sua posse na Academia Brasileira de Letras. Graduou-se em 1930 e, escolhido
orador da turma[1]
– cujo paraninfo foi o Prof. Samuel Libânio (FENSKE, 2013).
Durante o ano e meio em que clinicou na
região de Itaguara, MG, Guimarães Rosa voltou suas atenções para os mais
humildes. Suas ações iam além dos cuidados médicos. Isso é relatado por Luiz Otávio
Savassi Rocha, pesquisador da obra de Guimarães Rosa:
com raizeiros e receitadores, a
ponto de se tornar grande amigo de um deles, de nome Manoel Rodrigues de
Carvalho (seu Nequinha), que morava
num grotão enfurnado entre morros,
num lugar conhecido por Sarandi. Kardecista, seu Nequinha parece ter inspirado
a criação do personagem Compadre Quelemém, espécie de oráculo sertanejo em
Grande sertão: veredas. Segundo o Prof. Paulo Rónai (comunicação pessoal),
Quelemém é a transcrição exata do nome próprio Kelemen, forma húngara do
antropônimo Clemente (do latim clemensentis). Como se vê, o nome faz jus ao
personagem: “Homem de mansa lei, coração tão branco e grosso de bom, que mesmo
pessoa muito alegre ou muito triste gosta de poder conversar com ele”. (ROCHA,
2002, p.249 – 256).
O escritor foi casado com Lígia Cabral Penna e pai de duas filhas,
Vilma e Agnes. Em 1938 é
nomeado Cônsul Adjunto em Hamburgo e por causa disso vai morar na Europa onde
conhece Aracy Moebius de Carvalho² (Ara) que será sua segunda mulher.
No tempo em que esteve na Alemanha, aproveita para conhecer vários países
europeus. Durante o período da ll Guerra Mundial, ajudou D. Aracy,
então sua esposa e chefe da seção de passaportes do consulado, a proteger e
salvar a vida de muitos judeus perseguidos pelo Nazismo³,
fornecendo-lhes vistos de entrada para o Brasil, sem mencionar a religião do
portador. Essa atitude do casal teve o reconhecimento merecido conforme
informação colhida em um sitio eletrônico cuja autoria é de Elfi Küerten
Fenske:
o nome do casal Guimarães Rosa
foi dado a um bosque ao longo das encostas de Jerusalém, em 1985(4). Segundo D. Aracy, que compareceu a
Israel por ocasião da homenagem, seu marido sempre se absteve de comentar o
assunto já que tinha muito pudor de falar de si mesmo. Apenas dizia: "Se
eu não lhes der o visto, vão acabar morrendo; e aí vou ter um peso em minha
consciência." (FENSKE, 2013).
Guimarães Rosa não gostava de dar entrevistas,
segundo suas palavras a Lorenz: “Eu certamente não teria aceito seu convite se esperasse uma entrevista.
As entrevistas são trocas de palavras em que um formula ao outro perguntas
cujas respostas já conhece de antemão.” Das conversas
e poucas entrevistas que ficaram gravadas, pode-se
extrair revelações sobre o que o autor
pensava e sentia. A citação extensa justifica-se pela beleza do conteúdo e por entender-se que é
uma maneira de conhecer um pouco das ideias e personalidade desse
grande escritor:
- João, como é que você, que fala com essa absurda
simplicidade, usa todo aquele “rebuscamento” para criar um conto?
- Você conhece os
meus cadernos, não conhece? Quando eu saio montado num cavalo, por minha Minas
Gerais, vou tomando nota de coisas. O caderno fica impregnado de sangue de boi,
suor de cavalo, folha machucada. Cada pássaro que voa, cada espécie, tem vôo
diferente. Quero descobrir o que caracteriza o vôo de cada pássaro, em cada
momento. Não há nada igual neste mundo. Não quero palavra, mas coisa,
movimento, vôo.
- Fale de seu pai.
- Papai é um homem
muito rigoroso. Quando eu era menino me levava pra caçar com ele. Quando eu
avistava caça, gritava por papai. Ele vinha correndo e a caça fugia. Um dia
papai desconfiou que eu gritava de propósito para que ele não pudesse matar os
bichos e nunca mais me levou. Papai era comerciante, está velhinho hoje. Quando
eu era garoto pensava que era rico. Lá, em Cordisburgo... eu era. Mas quando
precisei ser rico ... cadê?
- Você não acha que seria bom, para
aproximar sua obra do grande público, para que o público venha conhecer melhor Guimarães
Rosa gente, falar mais de você?
- Não. Quero que a
minha obra se imponha sozinha. O livro deve ser vendido como toucinho,
manteiga. Nunca quis ajuda de pessoas amigas para os meus livros. Deve ser
coisa impessoal. A prova da arte é vender-se por si. Eu não crio facilidade,
crio dificuldade. Só acredito no eterno. Não quero facilidades. Por isso meu
livro “Sagarana” começa com o conto mais difícil. Se eu pudesse só poria, nas
capas, as críticas que escrevessem mal de meus livros, para dificultar ainda
mais. Tenho tanta confiança de que a minha obra vai crescer com o tempo que sua
divulgação não me preocupa.
A conversa muda de
rumo:
- Quando vim para a
cidade grande, respirei ao ver que a gente não conhece o condutor nem o
vizinho. A cidade grande desumaniza... mas depois, humaniza num plano mais
alto. Detesto o cotidiano. Pra mim é um suplício comer, fazer a barba, vestir.
O todo-dia é um inferno. Não leio jornal na hora. Jornal é angústia
concentrada. Só leio matutino à noite... pra dar distância. Vivo para uma coisa
maior, um vir-a-ser de uma natureza diferente. A arte permite isso. Permite
essa transformação. Por mim os livros não deviam nem trazer nome do autor. O
autor devia ser um mistério.
- Estamos quase
chegando e eu pergunto cretinamente: - Por que você só usa gravata borboleta?
- Não é pergunta de
entrevista, é?
- Não. É que eu acho
que a gravata borboleta define as pessoas.
- É porque nunca
aprendi a dar laço nas gravatas comuns. Acho esta mais fácil.
Paro o carro, enquanto Rosa termina um
pensamento de algo discutido antes:
- Vejo o ser humano
como rascunho do que vai ser.
Ele salta e se despede:
- Desculpe, Bloch.
Não fique decepcionado comigo, mas eu não dou entrevista. Você compreende, não
é? Não posso magoar os outros.
E fecha a porta do
carro, enquanto lhe grito: - E o Brasil, hem?
- O Brasil, como?
- Você não está
sofrendo com as surras que estamos levando na Europa em futebol?
- Eu não leio as derrotas do Brasil. ("Você sabe que eu fui
center-half no time do meu colégio?")
E ao se afastar: - Só leio jornal quando o Brasil ganha.(5)
Guimarães Rosa sonhava em entrar para a Academia Brasileira de Letras.
Dizia que precisava provar para sua mãe que era um escritor de verdade e porque
não podia negar a glória acadêmica à sua pequena cidade, Cordisburgo. Tentou
por duas vezes, até que consegui. Em seu sitio eletrônico, Arnaldo Nogueira
Junior informa que:
em 1963
candidata-se, pela segunda vez, à Academia Brasileira de Letras, na vaga de
João Neves da Fontoura, e visita acadêmicos, em campanha
eleitoral, firmemente decidido a obter vitória. É eleito, em 08 de agosto, por
unanimidade, membro da Academia Brasileira de Letras. Misteriosamente, começa a
adiar, sine die, a cerimônia de posse. Após
quatro anos de adiamento, reflexo do medo que sentia da emoção que o momento
lhe causaria, resolve assumir a cadeira na ABL.” – A Academia é muito para mim. Sou tão pequeno como a cidade em que
nasci”- Ainda que risse do pressentimento,
afirmou no discurso de posse: "...a gente morre é para provar que viveu."
O escritor pronuncia seu discurso de
posse por 1 hora e meia com a voz
embargada. Parece pressentir que algo de mal lhe aconteceria. Com
efeito, três dias depois, em 19 de novembro de 1967, ele morreria subitamente
em seu apartamento em Copacabana, sozinho (a esposa fora à missa), mal tendo
tempo de chamar por socorro (NOGUEIRA JUNIOR, 2013).
Embora tenha começado a publicar aos
38 anos, com uma bibliografia considerada pequena, Guimarães Rosa conseguiu com
sua arte em palavrear, um lugar de destaque na Literatura Brasileira. Esse grande escritor, possuidor de qualidades
ímpares como ser humano, distinguiu os seus conterrâneos e reverenciou a Língua Portuguesa. Alcançou o
mundo...
[1]O discurso do doutorando João Guimarães Rosa – Sob o foco das lanternas evocadoras –
foi publicado no “Jornal Minas Geraes”, órgão da Imprensa Oficial do Estado, em
sua edição de 22 e 23 de dezembro de 1930. (ROCHA, Luiz Otávio Savassi. SCRIPTA,
Belo Horizonte, v. 5, n. 10, p. 249-256, 1º sem. 2002).
[2] Aracy Carvalho
Guimarães Rosa recebeu do marido uma das homenagens que merecia. É dedicado
a ela um dos livros fundamentais da moderna literatura brasileira: "Grande Sertão: Veredas"."A
Aracy, minha mulher, Ara, pertence este livro”.
[3] Sobre
esse assunto Guimarães Rosa responde a LORENZ: “E agora o que houve em Hamburgo
é preciso acrescentar mais alguma coisa. Eu, o homem do sertão, não posso
presenciar injustiças. No sertão, num caso desses imediatamente a gente saca o
revólver, e lá isso não era possível. Precisamente por isso idealizei um
estratagema diplomático, e não foi assim tão perigoso. E agora me ocupo de problemas
de limites de fronteiras e por isso vivo muito mais limitado.”
[4]Em 08 de julho
1982, recebe o título de "Justa entre as Nações",
concedido pelo Museu do Holocausto
de Jerusalém, por salvar a vida de vários judeus, vítimas do nazismo. É considerada o Anjo
de Hamburgo, prêmio da ONG B’nai B’rith (instituição judaica).
Apenas
outro brasileiro, o embaixador Luiz de Souza Dantas (1876-1954), recebeu a
mesma honraria, em 2003.
A única mulher
mencionada no Museu do Holocausto, em Israel e nos Estados Unidos, é importante
ressaltar sua existência e exaltá-la na história do Brasil na II Guerra
Mundial.(FENSKE, 2011).
[5]Guimarães Rosa, entrevistado por
Pedro Bloch e Publicado na revista Manchete, nº 580, de 15/06/1963. [Extraído
de: Pedro Bloch entrevista Rio de Janeiro, Bloch, Ed. 1989].
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