segunda-feira, 17 de junho de 2019


O PAPEL DO TRABALHO NA CONSTRUÇÃO DA IDENTIDADE DO TRABALHADOR      


O trabalho, como formador de valores de uso, como trabalho útil, é uma condição de existência do homem, independente de quaisquer formas de sociedade, é uma necessidade natural eterna que tem a função de mediar o intercâmbio entre o homem e a natureza, isto é, a vida dos homens.
Karl Marx



            A ideia do trabalho como a vemos hoje, sofre mudanças continuamente de acordo com as comunidades. No entanto, é sabido que o trabalho é fator preponderante na construção da identidade do indivíduo, uma vez que sem o trabalho, seja como fonte de subsistência para suprir as necessidades básicas, seja apenas para uma elevação pessoal ou profissional, o fato é que o trabalho cumpre seu papel, principalmente legando dignidade  ao homem.
            De acordo com Ferraz, Garcia e Silva (2010, p.1) “o trabalho está intimamente conectado às necessidades e possibilidades humanas de manifestação de liberdade e subjetividade, demandando desenvolvimento de técnica e conhecimento”. Para os autores o trabalho cria necessidades culturais num processo de intervenção sobre o mundo, modificando o sujeito e possibilitando um novo cenário de necessidades e possibilidades.
            Sabe-se que somente por meio do trabalho, ou seja pela remuneração deste,  é possível ao trabalhador a aquisição de bens materiais que irão lhe propicionar condições de viver dignamente, como obter a casa própria, e outros bens de consumo, alimentação, lazer, saúde, e também frequentar uma escola e outros espaços reservados para esse fim. Além disso, o ambiente de trabalho favorece as relaçoes sociais, sendo que o empresariado contemporâneo, ciente da importância do relacionamento entre seus colaboradores, para o sucesso do grupo, cria condições que estimulam essas  relações, promovendo toda espécie de reuniões e eventos. Dessa forma, é certo que o trabalho também favorece o diálogo no meio sociocultural e com a realidade.
            Essa interação permite, ou antes, propicia a construção da identidade uma vez que, segundo Citadino (2007, p.1) “a construção da nossa identidade pressupõe esse diálogo, aberto ou interno, amoroso ou conflitivo, com aqueles que nos cercam”. Naturalmente que isso se dá também com todas as nossas atividades e em nossas relações de trabalho.
            A partir daí podemos pensar  que o reconhecimento do outro e consequentemente de si mesmo leva à configuração das identidades. E alinhando o pensamento com  Cittadino (2007) quando há ausência desse reconhecimento, os indivíduos estabelecem representações que aviltam a si próprios construindo então uma invisibilidadade social. Isso não quer dizer uma invisibilidade física, mas uma “não-existência no sentido social”. Para essa autora:
quando indivíduos negros, por exemplo, internalizam signos de inferioridade porque, durante gerações, a sociedade branca lhes transmitiu imagens deprimentes de si mesmos, essa autodepreciação torna-se um dos meios mais eficazes de sua própria opressão (CITTADINO, 2007, p. 2).

            Na elaboração de seu estudo, Soares e Vieira (2009, p.6) afirmam que é na empresa o local de socialização secundária por ser onde o ‘eu’ luta pelo próprio reconhecimento pelos outros, “ou seja  pelo reconhecimento social do seu valor”. Soares e Vieira (2009) ainda interpretam que “os sujeitos relacionam identidade com a congruência entre os valores que o indivíduo traz consigo [...] com aqueles que a organização assume como seus”, sendo um processo em construção que resulta dos diversos confrontos existentes entre os desejos dos sujeitos “nas relações sociais e de poder nos locais de trabalho”.
             Ciampa (1987)  argumenta  que a “atividade social metamorfoseia” (34) o indivíduo, embora não haja mudanças aparentes. “Cada indivíduo encarna as relações sociais configurando uma identidade social” (p.127). É certo então que a identidade se transforma continuamente, já que ocorrem mudanças contínuas na sociedade e o indivíduo faz parte desse contexto. Pode-se inferir também, de acordo com Ciampa em sua obra  A Estória de Severino e a História de Severina (2000) que é certo que o indivíduo, de acordo com suas atividades,  também se transforma.
             Lima (2018, p.1) afirma que é possível saber “quem é a pessoa  não apenas por sua definição, mas por suas atividades. Esta é a principal construção da identidade”.
            Todas as ideias apresentadas até aqui confirmam a importância do trabalho na vida e dignidade humana. Entretanto, as mudanças ocorridas na sociedade e diante de estudos dos teóricos é possível  afirmar que o trabalho, na atualidade, não constitui uma força homogênea, apesar de ser considerado como a dimensão mais importante da vida humana. Isso porque o trabalho não adquire a mesma função para todas as pessoas, e também possuindo significados distintos para cada um.      Além disso, a “institucionalização  do trabalho e sua relação com outros papéis de vida modelam grande parte do significado a ele atribuído”. Na visão de Cittadino (2007) o homem é o ele que faz, porém, pensando nas transformações que ocorrem na sociedade, e na própria dimensão subjetiva do trabalho, considera-se que essa identidade também está se transformando.
            A conjuntura reforça a ideia expressa pelos autores de que a relação estabelecida entre o trabalho e os indivíduos é de caráter ambíguo, uma vez que o trabalho já não garante uma expressão segura de identidade, devido as transformações já citadas, e ao enfraquecimento de instituições como família e Estado.
            Além disso, e alinhado com o pensamento de Bertani e Barrreto (2004) entende-se que  a forma de produção existente na contemporaneidade,  provoca  uma descentralização  do indivíduo, já que o maquinário lhe rouba a autoria do produto. Assim, o produto assume um valor superiror ao ser humano, desumanizando-o e levando-o a um estado de coisificação . Dessa forma o operário se transforma em mercadoria por ter sua força de trabalho avaliada ao preço de mercado. Pode-se argumentar, portanto, que diante dessa situação o trabalho, embora responsável pela organização da vida pessoal e social dos indivíduos,  já não consegue construir identidades inteiras e polarizadas, uma vez que elas se fragmentam ou se pluralizam diante das contigências.
             A situação clarifica uma vez que o trabalho perde uma dimensão central, subjetiva qual seja: o papel preponderante na constituição identitária dos indivíduos. Isso será apresentado a seguir.

PROFISSÕES ESTIGMATIZADAS

            Em seu livro Homens invisíveis: uma humilhação social Fernando Braga da  Costa (2004), citado por Jasper (2005) relata o tempo que viveu, enquanto trabalhou de gari, experiência que se impôs para recolher um material real e verdadeiro e assim escrever o livro citado. Costa era estudante de Psicologia na USP de São Paulo e a experiência fazia parte de um trabalho acadêmico. Experiência tão rica que se tornou objeto do mestrado e agora alvo do doutorado.
            Em seu livro Costa (2004) relata que “as pessoas pelas quais passávamos não reagiam à nossa presença. (...) Nenhuma saudação corriqueira, um olhar, sequer um aceno de cabeça. Foi surpreendente. Eu era um uniforme que perambulava: estava invisível". O autor conta que vestido com o uniforme de gari ele não foi reconhecido, pelos professores que passavam por ele, nem pelos colegas, na faculdade. Era como se não existisse, como se fizesse parte da paisagem: estava invisível.
            Silva  diz em seu estudo que:
os coletores de lixo domiciliar são discriminados, tratados com indiferença, hostilizados ou simplesmente invisibilizados, pois carregam consigo a marca desse processo histórico. São sujeitos sociais portadores de uma história de vida delicada, marcada por intensa pobreza, marginalizados do circuito de consumo e que, ironicamente, acabaram achando seu “lugar ao sol por detrás das cortinas do espetáculo capitalista de produção exacerbada de mercadorias”, isto é, no tempo e no espaço localizados após o último passo do consumo, o descarte, um mundo, desde então, invisível, além das lixeiras.  (SILVA, 2016, p. 227).

            Se a profissão de garis para homens não é reconhecida isso se torna bem pior para mulheres, como relata Rodolfo Godoi em seu estudo. Ele fala das condições de trabalho desumanas das garis, pelo próprio trabalho e também pela condição feminina que por si já invisibiliza o indivíduo. Para o autor  invisibilidade e a abjeção  está presente todos os dias  na vida e no trabalho das mulheres garis.  Suas atividades,  não são reconhecidas, nem valorizadas, sendo identificadas com a própria sujeira. Uma sujeira que polui e que contamina a quem se aproxima delas. Godoi também cita as tarefas do lar como não sendo notadas quando executadas  nem  quem as realiza.
            Considera-se que é fácil reconhecer o quão desvalorizado é o trabalho de varrição das ruas, uma vez que é uma prática comum, principalmente em cidades grandes, as pessoas jogarem lixo no chão, ainda que um pequeno papel. Muitos o fazem inconsciente do ato. No entanto, a invisibilidade social imprimida a esses profissionais vai além do ato de se jogar lixo na rua. Outras profissões podem ser citadas, como é o caso dos porteiros e seguranças no geral.
            Silva (2016, p. 228) bem esclarece em seu estudo que a problemática da invisibilidade social se trata de um problema estrutural e ideológico a partir de uma “história de desenvolvimento e estratificação das classes sociais, processo econômico, político, mas também ideológico”. Para o autor, a ideologia de superioridade e meritrocacia oriunda da burguesia, com o passar do tempo se disseminou também entre a classe média, com quem os coletores de lixo convivem durante a sua jornada laboral.
            Diante do que foi exposto, pode-se asseverar que o trabalho, enquanto em outras profissões é um fator preponderante de afirmação de dignidade, sendo uma ferramenta essencial para a sobrevivência, uma vez que por meio dele são obtidos os meios de subsistência, e por entrelaçar os sujeitos no aspectos sociocultural, o que fundamenta a identidade, o mesmo não acontece em  profissões que promovem a invisibilidade social.
            Nesse casos, o inverso se faz presente com a força e a certeza de uma realidade palpável e concreta: ao envergar o uniforme que deveria lhe conferir a honra e o respeito de trabalhador, de contribuinte com o bem-estar de uma sociedade, e por isso mesmo ser valorizado e reconhecido, o indivíduo se percebe nulo. Aquém do próprio resíduo que recolhe, visto e evitado. O indivíduo não existe, não tanto  pelo que faz, digno como qualquer outro, mas pela visão distorcida de uma sociedade doente e segregacionista.


REFERÊNCIAS


BERTANI, Íris Fenner. BARRETO, Sirlene Aparecida Pessalacia. As transformações no mundo do trabalho e as consequencias na subjetividade dos indivíduos. KATÁLYSIS v. 7 n. 2 jul./dez. 2004. Florianópolis SC 203-207. Disponível em:
<https://periodicos.ufsc.br/index.php/katalysis/article/viewFile/6850/6331>.
Acesso em 8 maio 2018.


CITTADINO, Gisele. IGUALDADE E “INVISIBILIDADE”. CEDES – CENTRO DE ESTUDOS DIREITO E SOCIEDADE – BOLETIM/ABRIL DE 2007. Disponível em:
<http://www.cis.puc-rio.br/cis/cedes/banco%20artigos/Filosofia%20e%20Teoria%20do%20Direito/gisele.pdf>.
Acesso em 8 maio 2018.


FERRAZ, Anita Pereira Ferraz. GARCIA, July Carlos. SILVA, Tatiana Freire da. A centralidade da categoria trabalho no contexto da precarização das relações de trabalho: perspectivas para o serviço social.
Sem. de Saúde do Trabalhador de Franca. Sep. 2010. Disponível em:<http://www.proceedings.scielo.br/scielo.php?pid=MSC0000000112010000100037&script=sci_arttext>.
Acesso em 8 maio 2018.

GODOI, Rodolfo. Mulheres garis e a socialização do trabalho invisível. Graduando em sociologia pela Universidade de Brasília. [200?]. Disponível em:
<https://strabalhoegenero.cienciassociais.ufg.br/up/245/o/Mulheres_garis_e_a_socializa%C3%A7%C3%A3o_do_trabalho_invis%C3%ADvel..pdf>.
Acesso em 4 maio 2018>

LIMA, Cristiano. O trabalho como importante fator na formação da identidade - Uma análise do projeto Mãe Colaboradora, do IPREDE – 2018.

Disponível em:
<http://www.psicorh.com.br/2012/05/o-trabalho-como-importante-fator-na.html>.
Acesso em 4 maio 2018.


SILVA, João Vitor Ramos da.  Invisibilidade social e saúde do trabalhador : dinâmica territorial do trabalho na coleta de lixo domiciliar urbano em Presidente Prudente/SP / João Vitor Ramos da Silva. - Presidente Prudente : [s.n], 2016 254 f. Dissertação (mestrado) - Universidade Estadual Paulista, Faculdade de Ciências e Tecnologia
Disponível em: <http://ceget.fct.unesp.br/assets/site/pdf/Jo%C3%A3o_Vitor_Ramos_da_Silva.pdf>.
Acesso em 4 maio 2018.


SOARES, Daniela Cristina. VIEIRA, Adriane. O Sentido do Trabalho e a (Re)Construção das Identidades: um Estudo de Caso em uma Empresa de Telefonia Celular. XXXIII Encontro da ANPAD São Paulo, SP.
 Disponível em:
<http://www.anpad.org.br/admin/pdf/EOR325.pdf>.>
Acesso em 4 maio 2018.

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