O PAPEL DO TRABALHO NA
CONSTRUÇÃO DA IDENTIDADE DO TRABALHADOR
O trabalho, como formador de valores de uso, como
trabalho útil, é uma condição de existência do homem, independente de quaisquer
formas de sociedade, é uma necessidade natural eterna que tem a função de
mediar o intercâmbio entre o homem e a natureza, isto é, a
vida dos homens.
Karl
Marx
A
ideia do trabalho como a vemos hoje, sofre mudanças continuamente de acordo com
as comunidades. No entanto, é sabido que o trabalho é fator preponderante na
construção da identidade do indivíduo, uma vez que sem o trabalho, seja como
fonte de subsistência para suprir as necessidades básicas, seja apenas para uma
elevação pessoal ou profissional, o fato é que o trabalho cumpre seu papel,
principalmente legando dignidade ao
homem.
De acordo com Ferraz, Garcia e Silva
(2010, p.1) “o trabalho está intimamente conectado às necessidades e
possibilidades humanas de manifestação de liberdade e subjetividade, demandando
desenvolvimento de técnica e conhecimento”. Para os autores o trabalho cria
necessidades culturais num processo de intervenção sobre o mundo, modificando o
sujeito e possibilitando um novo cenário de necessidades e possibilidades.
Sabe-se
que somente por meio do trabalho, ou seja pela remuneração deste, é possível ao trabalhador a aquisição de bens
materiais que irão lhe propicionar condições de viver dignamente, como obter a
casa própria, e outros bens de consumo, alimentação, lazer, saúde, e também
frequentar uma escola e outros espaços reservados para esse fim. Além disso, o
ambiente de trabalho favorece as relaçoes sociais, sendo que o empresariado
contemporâneo, ciente da importância do relacionamento entre seus
colaboradores, para o sucesso do grupo, cria condições que estimulam essas relações, promovendo toda espécie de reuniões
e eventos. Dessa forma, é certo que o trabalho também favorece o diálogo no
meio sociocultural e com a realidade.
Essa
interação permite, ou antes, propicia a construção da identidade uma vez que,
segundo Citadino (2007, p.1) “a construção da nossa identidade pressupõe esse
diálogo, aberto ou interno, amoroso ou conflitivo, com aqueles que nos cercam”.
Naturalmente que isso se dá também com todas as nossas atividades e em nossas
relações de trabalho.
A
partir daí podemos pensar que o
reconhecimento do outro e consequentemente de si mesmo leva à configuração das
identidades. E alinhando o pensamento com
Cittadino (2007) quando há ausência desse reconhecimento, os indivíduos
estabelecem representações que aviltam a si próprios construindo então uma
invisibilidadade social. Isso não quer dizer uma invisibilidade física, mas uma
“não-existência no sentido social”. Para essa autora:
quando indivíduos
negros, por exemplo, internalizam signos de inferioridade porque, durante
gerações, a sociedade branca lhes transmitiu imagens deprimentes de si mesmos,
essa autodepreciação torna-se um dos meios mais eficazes de sua própria
opressão (CITTADINO, 2007, p. 2).
Na
elaboração de seu estudo, Soares e Vieira (2009, p.6) afirmam que é na empresa
o local de socialização secundária por ser onde o ‘eu’ luta pelo próprio
reconhecimento pelos outros, “ou seja
pelo reconhecimento social do seu valor”. Soares e Vieira (2009) ainda
interpretam que “os sujeitos relacionam identidade com a congruência entre os
valores que o indivíduo traz consigo [...] com aqueles que a organização assume
como seus”, sendo um processo em construção que resulta dos diversos confrontos
existentes entre os desejos dos sujeitos “nas relações sociais e de poder nos
locais de trabalho”.
Ciampa (1987)
argumenta que a “atividade social
metamorfoseia” (34) o indivíduo, embora não haja mudanças aparentes. “Cada
indivíduo encarna as relações sociais configurando uma identidade social”
(p.127). É certo então que a identidade se transforma continuamente, já que
ocorrem mudanças contínuas na sociedade e o indivíduo faz parte desse contexto.
Pode-se inferir também, de acordo com Ciampa em sua obra A
Estória de Severino e a História de Severina
(2000) que é certo que o indivíduo, de acordo com suas atividades, também se transforma.
Lima (2018, p.1) afirma que é possível saber “quem
é a pessoa não apenas por sua definição, mas por suas
atividades. Esta é a principal construção da identidade”.
Todas as ideias apresentadas até aqui confirmam a
importância do trabalho na vida e dignidade humana. Entretanto, as mudanças
ocorridas na sociedade e diante de estudos dos teóricos é possível afirmar que o trabalho, na atualidade, não
constitui uma força homogênea, apesar de ser considerado como a dimensão mais
importante da vida humana. Isso porque o trabalho não adquire a mesma função
para todas as pessoas, e também possuindo significados distintos para cada um. Além disso, a “institucionalização do trabalho e sua relação com
outros papéis de vida modelam grande parte do significado a ele atribuído”. Na
visão de Cittadino (2007) o homem é o ele que faz, porém, pensando nas
transformações que ocorrem na sociedade, e na própria dimensão subjetiva do
trabalho, considera-se que essa identidade também está se transformando.
A
conjuntura reforça a ideia expressa pelos autores de que a relação estabelecida
entre o trabalho e os indivíduos é de caráter ambíguo, uma vez que o trabalho
já não garante uma expressão segura de identidade, devido as transformações já
citadas, e ao enfraquecimento de instituições como família e Estado.
Além
disso, e alinhado com o pensamento de Bertani e Barrreto (2004) entende-se
que a forma de produção existente na
contemporaneidade, provoca uma descentralização do indivíduo, já que o maquinário lhe rouba a
autoria do produto. Assim, o produto assume um valor superiror ao ser humano,
desumanizando-o e levando-o a um estado de coisificação . Dessa forma o
operário se transforma em mercadoria por ter sua força de trabalho avaliada ao
preço de mercado. Pode-se argumentar, portanto, que diante dessa situação o
trabalho, embora responsável pela organização da vida pessoal e social dos
indivíduos, já não consegue construir
identidades inteiras e polarizadas, uma vez que elas se fragmentam ou se
pluralizam diante das contigências.
A situação clarifica uma vez que o trabalho
perde uma dimensão central, subjetiva qual seja: o papel preponderante na
constituição identitária dos indivíduos. Isso será apresentado a seguir.
PROFISSÕES
ESTIGMATIZADAS
Em
seu livro Homens invisíveis: uma
humilhação social Fernando Braga da
Costa (2004), citado por Jasper (2005)
relata o tempo que viveu, enquanto trabalhou de gari, experiência que se impôs
para recolher um material real e verdadeiro e assim escrever o livro citado.
Costa era estudante de Psicologia na USP de São Paulo e a experiência fazia
parte de um trabalho acadêmico. Experiência tão rica que se tornou objeto do
mestrado e agora alvo do doutorado.
Em
seu livro Costa (2004) relata que “as
pessoas pelas quais passávamos não reagiam à nossa presença. (...) Nenhuma
saudação corriqueira, um olhar, sequer um aceno de cabeça. Foi surpreendente.
Eu era um uniforme que perambulava: estava invisível". O autor conta
que vestido com o uniforme de gari ele não foi reconhecido, pelos professores
que passavam por ele, nem pelos colegas, na faculdade. Era como se não
existisse, como se fizesse parte da paisagem: estava invisível.
Silva
diz em seu estudo que:
os coletores de lixo
domiciliar são discriminados, tratados com indiferença, hostilizados ou
simplesmente invisibilizados, pois carregam consigo a marca desse processo
histórico. São sujeitos sociais portadores de uma história de vida delicada,
marcada por intensa pobreza, marginalizados do circuito de consumo e que,
ironicamente, acabaram achando seu “lugar ao sol por detrás das cortinas do
espetáculo capitalista de produção exacerbada de mercadorias”, isto é, no tempo
e no espaço localizados após o último passo do consumo, o descarte, um mundo,
desde então, invisível, além das lixeiras.
(SILVA, 2016, p. 227).
Se a profissão de garis para homens
não é reconhecida isso se torna bem pior para mulheres, como relata Rodolfo
Godoi em seu estudo. Ele fala das condições de trabalho desumanas das garis, pelo
próprio trabalho e também pela condição feminina que por si já invisibiliza o
indivíduo. Para o autor invisibilidade
e a abjeção está presente todos os
dias na vida e no trabalho das mulheres
garis. Suas atividades, não são reconhecidas, nem valorizadas, sendo
identificadas com a própria sujeira. Uma sujeira que polui e que contamina a
quem se aproxima delas. Godoi também cita as tarefas do lar como não sendo
notadas quando executadas nem quem as realiza.
Considera-se
que é fácil reconhecer o quão desvalorizado é o trabalho de varrição das ruas,
uma vez que é uma prática comum, principalmente em cidades grandes, as pessoas
jogarem lixo no chão, ainda que um pequeno papel. Muitos o fazem inconsciente
do ato. No entanto, a invisibilidade social imprimida a esses profissionais vai
além do ato de se jogar lixo na rua. Outras profissões podem ser citadas, como
é o caso dos porteiros e seguranças no geral.
Silva
(2016, p. 228) bem esclarece em seu estudo que a problemática da invisibilidade
social se trata de um problema estrutural e ideológico a partir de uma
“história de desenvolvimento e estratificação das classes sociais, processo
econômico, político, mas também ideológico”. Para o autor, a ideologia de
superioridade e meritrocacia oriunda da burguesia, com o passar do tempo se
disseminou também entre a classe média, com quem os coletores de lixo convivem
durante a sua jornada laboral.
Diante
do que foi exposto, pode-se asseverar que o trabalho, enquanto em outras profissões
é um fator preponderante de afirmação de dignidade, sendo uma ferramenta
essencial para a sobrevivência, uma vez que por meio dele são obtidos os meios
de subsistência, e por entrelaçar os sujeitos no aspectos sociocultural, o que
fundamenta a identidade, o mesmo não acontece em profissões que promovem a invisibilidade
social.
Nesse
casos, o inverso se faz presente com a força e a certeza de uma realidade
palpável e concreta: ao envergar o uniforme que deveria lhe conferir a honra e
o respeito de trabalhador, de contribuinte com o bem-estar de uma sociedade, e
por isso mesmo ser valorizado e reconhecido, o indivíduo se percebe nulo. Aquém
do próprio resíduo que recolhe, visto e evitado. O indivíduo não existe, não
tanto pelo que faz, digno como qualquer
outro, mas pela visão distorcida de uma sociedade doente e segregacionista.
REFERÊNCIAS
BERTANI, Íris Fenner. BARRETO, Sirlene Aparecida
Pessalacia. As transformações no mundo
do trabalho e as consequencias na subjetividade dos indivíduos. KATÁLYSIS v.
7 n. 2 jul./dez. 2004. Florianópolis SC 203-207. Disponível em:
<https://periodicos.ufsc.br/index.php/katalysis/article/viewFile/6850/6331>.
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CITTADINO, Gisele. IGUALDADE E “INVISIBILIDADE”. CEDES – CENTRO DE ESTUDOS DIREITO E
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Acesso em 8 maio 2018.
FERRAZ, Anita Pereira Ferraz. GARCIA, July
Carlos. SILVA, Tatiana Freire da. A
centralidade da categoria trabalho no contexto da precarização das relações de
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LIMA,
Cristiano. O trabalho como importante fator na formação
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SILVA,
João Vitor Ramos da. Invisibilidade social e saúde do trabalhador
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Presidente Prudente/SP / João Vitor Ramos da Silva. - Presidente Prudente :
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Disponível
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Disponível em:
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Acesso
em 4 maio 2018.
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