2 Um Fosforém
(A Obra)
Eu
trazia sempre os ouvidos atentos, escutava todo o que podia e comecei a
transformar em lenda o ambiente que me rodeava, porque este, em sua essência,
era e continua sendo uma lenda.
João Guimarães Rosa
Em uma narrativa com cerca de 600 páginas, sem seções e sem capítulos,
João Guimarães Rosa, apresenta sua obra-prima Grande Sertão: Veredas.
Trata-se
de um monólogo em que
Riobaldo conta a sua vida a um senhor, da cidade, na
tentativa de compreender o que viveu, no tempo em que era chefe de jagunços e
apelidava-se Tatarana e depois Urutú-Branco. Esse senhor, que muitos estudiosos
pressupõem ser o próprio autor, não se manifesta, sendo perceptível apenas
pelas marcas textuais, o que, em uma análise, pode ser entendido como um
interlocutor. Não há falas desse senhor,
mas percebe-se sua presença pelas supostas perguntas e pela reiteração do nome
“senhor”. Portanto, identifica-se a alteridade no próprio silêncio e nos
intervalos das falas de Riobaldo. Isso caracteriza haver um diálogo, embora se ouça apenas a voz do entrevistado, como se essa
fosse a hora e a vez de um sujeito subalterno pronunciar sua versão da história:
“Então, o senhor me responda: o amor assim pode vir do demo? Poderá?! Pode vir
de um-que-não-existe? Mas o senhor calado convenha. Peço não ter resposta.” (ROSA,
2006, p. 139)
Riobaldo
não tinha pai e, após a morte da mãe, ele vai morar com o padrinho, que o encaminha a um professor – Mestre Lucas.
Dessa forma, Riobaldo aprende a ler e escrever, o que o distingue dos outros
jagunços: “Gente! Feito meninos. Disso eu fiz um pensamento: que eu era muito
diverso deles todos, que sim. Então, eu não era jagunço completo, estava ali no
meio executando um erro.” (ROSA, 2006, p.358).
Ainda
criança, ao pagar uma promessa
de cura de doença, feita pela mãe, Riobaldo vem a
conhecer o Menino nas margens do
de-Janeiro. Esse encontro marca a sua vida: “Mas
eu olhava esse menino com um prazer de companhia, como nunca por ninguém eu não
tinha sentido”. (ROSA, 2006, p. 103). De todas as impressões que o Menino deixa
em Riobaldo, uma chama a atenção, e ele vai repetir por toda a história: são os
olhos verdes. Ele os descreve, já no primeiro encontro, na travessia do Rio São
Francisco: “O vacilo da canoa me dava um aumentante receio. Olhei: aqueles
esmerados esmartes olhos, botados verdes, de folhudas pestanas, luziam um
efeito de calma, que até me repassasse” (ROSA, 2006, p.103).
Rejeitando
a ideia de que o padrinho possa ser seu pai, Riobaldo, já adulto, foge sem
rumo. Em um pouso no meio de sertão, ele reencontra o Menino, de nome
Reinaldo, que se tornara um jagunço. A
partir daí, Riobaldo o segue entrelaçando suas vidas em um sentimento profundo,
porém inaceitável para Riobaldo,
homem-macho, que não compreende como isso fora acontecer. E ele vai ser jagunço
sem o desejar: “O jagunço Riobaldo. Fui eu? Fui e não fui. Não fui! – porque
não sou não quero ser. Deus esteja!” (ROSA, 2006, 216).
Reinaldo, “de feições delicadas”, mas “bom de briga de faca”, torna-se o companheiro
inseparável. Em um momento, ele revela a Riobaldo possuir outro nome – Diadorim
– do qual gostaria de ser chamado, porém somente quando estivessem a sós.
Em suas divagações, Riobaldo recorda que,
desde aquele dia, atravessando o
de-Janeiro, Reinaldo havia lhe apresentado as belezas do sertão. Assim,
por toda a história, a natureza emoldura esse amor dando força à saudade
que o faz lembrar como: “Que se hoje fosse. Diadorim me pôs o rasto dele
para sempre em todas essas quisquilhas da natureza.”(ROSA, 2006, p.29) Essas
imagens contribuem para que a linguagem utilizada pelo autor seja mais poética.
Em
uma das lutas travadas pelos jagunços, Joca Ramiro, o Chefe, que vem a ser pai de Diadorim, é morto à
traição. Riobaldo, então, promete ajudar Diadorim em sua vingança de matar os
culpados. Diante da dificuldade de exterminar Hermógenes, o traidor, Riobaldo
acredita que ele – Hermógenes – tem um pacto com o Demônio, o que o torna quase
invencível nas lutas. Isso leva Riobaldo a tentar esse pacto, com o objetivo de
ficar poderoso e assim vencer o próprio Hermógenes, em um local chamado “Veredas-Mortas”, sendo essa uma das
passagens mais tensas do livro:
sapateei, então me assustando de que
nem gota de nada sucedia, e a hora em vão passando. Então ele não queria
existir? Existisse. Viesse! Chegasse, para o desenlace desse passo... Digo,
direi, de verdade: eu estava bêbado de meu. Ah, esta vida às nãoa–vezes, é
terrível bonita, horrorosamente, esta vida é grande. Remordi o ar:
- Lúcifer! Lúcifer...!
- Aí eu bramei, desengulindo. Não.
Nada. O que a noite tem é o vozeio de um ser-só. – que principia feito grilos e
estalinhos, e o sapo-cachorro, tão arranhão. E que termina num queixume
borbulhado tremido, de passarinho ninhante mal-acordado dum totalzinho de sono.
-Lúcifer! Satanaz!...
Só outro silêncio. O senhor sabe o que o silêncio é? É a gente mesmo, demais.
(ROSA, 2006, p. 422).
Uma das questões que Riobaldo levanta ao narrar a sua vida ao “Senhor” é
a opinião dele sobre esse fato. Seria verdade? Ele teria, realmente, feito um
pacto com o “Que-não-há”? Nas muitas
análises sobre a obra, alguns estudiosos argumentam que o autor usa um recurso
para desfazer essa dúvida. Ao afirmar que o lugar onde teria feito o pacto não
existe com aquele nome, tendo outro bem diferente – “Veredas Altas”– o narrador demonstra que esse fato não aconteceu
realmente.
Verdade
ou não, o fato é que, ao retornar ao acampamento, Riobaldo se sente mais forte
e capaz, alcançando o posto de Chefe e passando a se chamar Urutú- Branco.
Nessa posição, Riobaldo consegue levar o bando a atravessar o Liso do
Suassurão, uma das empreitadas mais difíceis devido à dificuldade de
sobrevivência nessa região do sertão, o que faz com que todos o respeitem mais
ainda.
Entremeado
com todos os acontecimentos, sobressai o amor de Riobaldo e Diadorim. Guimarães
Rosa fala desse amor de uma forma que leva ao enlevamento. Contudo, cúmplice da
dramaticidade presente no enredo, o leitor percebe que, assim como em outros
amores imortalizados, na Literatura, deve-se esperar um desfecho insólito.
Embora
não se declarassem, um percebe o amor do outro. Diadorim revela esse sentimento
através do “açoite de ciúme” que tem
do amigo nos seus casos com outras mulheres, principalmente de Otacília, que
ama Riobaldo. Mas é no cuidado, nas
falas truncadas, nos gestos abortados a meio e nos olhares verdes da cor do
rio, da cor das folhas da palmeira, que Riobaldo percebe o amor de Diadorim:
sério, quieto, feito ele mesmo, só igual a ele mesmo nesta
vida. Tinha notado minha ideia de fugir, tinha me rastreado, me encontrado. Não
sorriu, não falou nada. Eu também não falei. O calor do dia abandava. Naqueles
olhos e tanto de Diadorim, o verde mudava sempre, como a água de todos os rios em seus lugares ensombrados. Aquele
verde arenoso, mas tão moço, tinha muita velhice, muita velhice, querendo me
contar coisas que a ideia da gente não dá para entender – e acho que é por isso
que a gente morre. De Diadorim ter vindo, e ficar esbarrado ali, esperando meu
acordar e me vendo meu dormir, era engraçado, era para se dar feliz risada. Não
dei. Nem pude nem quis. Apanhei foi o silêncio dum sentimento feito um decreto:
- Que você em sua vida toda por diante, tem de ficar para mim, Riobaldo, pegado
em mim, sempre!... – que era como se Diadorim estivesse me dizendo. (ROSA, 2006
pp. 288-289)
Riobaldo pede para que eles saiam daquela vida. Vão viver juntos bem longe dali. Mas
Diadorim recusa naquele momento, porque quer vingar a morte do pai. E então o
jagunço fica, irremediavelmente, “preso” a esse amor:
pensei em Diadorim. O que eu
tinha de querer era que nós dois saíssemos sobrados com vida, desses todos combates, acabasse guerra, nós dois
largávamos a jagunçada, íamos embora, para os altos Gerais tão ditos, viver em
grande persistência.(ROSA, 2006 p. 208).
Finalmente
o bando de jagunços se encontra com o bando de Hermógenes e tem início a luta
desejada para pôr fim ao drama vivido por todos aqueles homens. No meio da rua,
no meio do redemunho, Riobaldo vê de um lado Hermógenes, “desumano, dronho –
nos cabelões da barba” (ROSA, 2006, p. 594). E do outro lado, Diadorim, o
grande amor de sua vida com a faca na mão. E após a luta ferrenha, o desfecho
que faz os olhos marejarem e a sensação de que “o trovão não acabou de rolar
até o fundo, e se sabe que caiu o raio. Diadorim tinha morrido!” (ROSA, 2006,
p. 596).
E na
preparação do corpo, a verdade, terrível. A sufocação que não deixa o clarear
das ideias. A surpresa pior que a dor – o estarrecimento “à coice d’arma, a coronha.” O uivo que revela o desespero diante
do amor que não era impossível. E a palavra, estrangulada durante tanto tempo,
se cristaliza única, doridamente – “Meu amor!”
ela era. Tal que assim se desencantava, num encanto
tão terrível: e levantei a mão para me benzer – mas com ela tapei foi um
soluçar, e enxuguei as lágrimas maiores. Uivei. Diadorim! Diadorim era uma
mulher. Diadorim era uma mulher como o sol não acende a água do rio Urucúia,
como eu solucei meu desespero (ROSA, 2006 p.599).
Antes
de abandonar a chefia dos jagunços ordena que a “Enterrem separado dos outros
num aliso de vereda, adonde ninguém ache, nunca se saiba”. (ROSA, 2006, p.600).
Ao
atingir esse ponto da narrativa, Riobaldo declara ao seu interlocutor que a
história está acabada. Como se somente essa parte da sua vida tivesse realmente
importância. Ele reparte seus pertences entre os amigos, e vai embora.
resoluto saí de lá, em galope doidável. Mas, antes, reparti
o dinheiro, que tinha, retirei o cinturão-cartucheiras – aí ultimei o jagunço
Riobaldo! Disse adeus para todos, sempremente (ROSA, 2006, p. 600).
Riobaldo continua o relato. Agora
sucintamente com um linguajar corriqueiro, prosaico. Ele revela que ficou mal de saúde, após
aqueles acontecimentos, tendo sido levado por conhecidos a uma fazenda onde
permanece para se restabelecer. Recebe a visita de Otacília e, depois de algum
tempo, casa-se com ela. Contudo, confessa ao senhor que o ouve que ainda hoje,
pensa em Diadorim, mesmo após tantos anos:
bem-querer de minha
mulher foi que me auxiliou, rezas dela, graças. Amor vem de amor. Digo. Em
Diadorim penso também – mas Diadorim é minha neblina. [...] Ah! Diadorim... e
tantos anos já se passaram (ROSA, 2006, p. 24- 191).
Hoje
leva vida de “range rede” (ROSA, 2006, p.10) em uma das fazendas que herdou do
padrinho, seu pai. Diante da confirmação
de sua ideia, pelo senhor ouvinte, conclui as respostas para o grande dilema de
sua vida: ”O diabo não há! É o que eu digo, se for... Existe é o homem humano.
Travessia.” (ROSA, 2006, p. 608).
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