quinta-feira, 16 de fevereiro de 2017

A Poética Roseana Capítulo 2.1


2.1 O Poeta do Sertão
      (O AUTOR)



Minha biografia, sobretudo minha biografia literária, não deveria ser crucificada em anos. As aventuras não têm tempo, não têm princípio nem fim. E meus livros são aventuras: para mim, são minha maior aventura. Escrevendo, descubro sempre um novo pedaço de infinito. Vivo no infinito; o momento não conta. Vou lhe revelar um segredo: creio já ter vivido uma vez. Nesta vida, também fui brasileiro e me chamava João Guimarães Rosa. Quando escrevo, repito o que vivi antes. E para estas duas vidas um léxico apenas não me é suficiente.
                                                       João Guimarães Rosa


            Apresentar a biografia de João Guimarães Rosa constitui um processo minucioso de pesquisa. A vida desse escritor é uma sucessão de acontecimentos que não poderiam deixar de ser citados. No entanto, é imperioso que se faça uma filtração devido à enorme quantidade de informações existentes. Para isso, selecionaram-se os dados em dois sítios eletrônicos, devidamente citados nas referências bibliográficas. A dificuldade está em escolher e alinhavar de acordo com a própria relevância e de interesse para essa pesquisa. A história desse grande escritor, médico e diplomata, contada por Elfi Küerten Fenske começa assim:
Joãozito, como era chamado pela família, nasce em 27 de junho de 1908, com sobrenome de poeta: Rosa, filho de Florduardo. Nasce no mesmo ano em que morre Machado de Assis, numa cidade chamada Cordisburgo, que quer dizer o “burgo do coração” (FENSKE, 2013).
Sobre sua origem, Guimarães Rosa declara a seu tradutor alemão, Günter Lorenz, em uma entrevista:
 nasci em Cordisburgo, uma cidadezinha não muito interessante, mas para mim, sim, de muita importância. Além disso, em Minas Gerais; sou mineiro. E isto sim é o importante, pois quando escrevo sempre me sinto transportado para esse mundo: Cordisburgo. (ROSA apud FENSKE, 2013).

            Guimarães Rosa gostava de ficar sozinho. Nesses momentos estudava Geografia e brincava colecionando insetos. Desde pequeno, lia muito. Certa vez, disse que, quando crescesse, escreveria “um pequeno tratado para meninos quietos”.
 mas tempo bom de verdade, só começou com a conquista de algum isolamento, com a segurança de poder fechar-me num quarto e trancar a porta. Deitar no chão e imaginar estórias, poemas, romances, botando todo mundo conhecido como personagem, misturando as melhores coisas vistas e ouvidas... (ROSA apud FENSKE, 2013).

            Desde que sai de seu vilarejo natal, Cordisburgo, por volta dos 10 anos de idade, para morar com os avós e assim estudar, em Belo Horizonte, Guimarães Rosa não para mais:
Guimarães Rosa ingressou na Faculdade de Medicina de Belo Horizonte (hoje Faculdade de Medicina da UFMG) com 17 anos incompletos. Em 1926, quando cursava o 2º ano, pronunciou, no anfiteatro da Faculdade, diante do ataúde de um estudante vitimado pela febre amarela, as palavras “As pessoas não morrem, ficam encantadas”, que, ouvidas na ocasião por seus colegas Alysson de Abreu e Ismael de Faria, seriam repetidas, 41 anos depois, quando de sua posse na Academia Brasileira de Letras. Graduou-se em 1930 e, escolhido orador da turma¹ – cujo paraninfo foi o Prof. Samuel Libânio (FENSKE, 2013).

             Durante o ano e meio em que clinicou na região de Itaguara, MG, Guimarães Rosa voltou suas atenções para os mais humildes. Suas ações iam além dos cuidados médicos. Isso é relatado por Luiz Otávio Savassi Rocha, pesquisador da obra de Guimarães Rosa: [...]
com raizeiros e receitadores, a ponto de se tornar grande amigo de um deles, de nome Manoel Rodrigues de Carvalho (seu Nequinha), que morava num grotão enfurnado entre morros, num lugar conhecido por Sarandi. Kardecista, seu Nequinha parece ter inspirado a criação do personagem Compadre Quelemém, espécie de oráculo sertanejo em Grande sertão: veredas. Segundo o Prof. Paulo Rónai (comunicação pessoal), Quelemém é a transcrição exata do nome próprio Kelemen, forma húngara do antropônimo Clemente (do latim clemensentis). Como se vê, o nome faz jus ao personagem: “Homem de mansa lei, coração tão branco e grosso de bom, que mesmo pessoa muito alegre ou muito triste gosta de poder conversar com ele”. (ROCHA, 2002, p.249 – 256)
                            
            O escritor foi casado com Lígia Cabral Penna e pai de duas filhas, Vilma e Agnes. Em 1938 é nomeado Cônsul Adjunto em Hamburgo e por causa disso vai morar na Europa onde conhece Aracy Moebius de Carvalho²(Ara) que será sua segunda mulher.
            No tempo em que esteve na Alemanha, aproveita para conhecer vários países europeus. Durante o período da ll Guerra Mundial, ajudou D. Aracy, então sua esposa e chefe da seção de passaportes do consulado, a proteger e salvar a vida de muitos judeus perseguidos pelo Nazismo³, fornecendo-lhes vistos de entrada para o Brasil, sem mencionar a religião do portador. Essa atitude do casal teve o reconhecimento merecido conforme informação colhida em um sitio eletrônico cuja autoria é de Elfi Küerten Fenske:
o nome do casal Guimarães Rosa foi dado a um bosque ao longo das encostas de Jerusalém, em 1985. Segundo D. Aracy, que compareceu a Israel por ocasião da homenagem, seu marido sempre se absteve de comentar o assunto já que tinha muito pudor de falar de si mesmo. Apenas dizia: "Se eu não lhes der o visto, vão acabar morrendo; e aí vou ter um peso em minha consciência." (FENSKE, 2013).

            Guimarães Rosa não gostava de dar entrevistas, segundo suas palavras a Lorenz: “Eu certamente não teria aceito seu convite se esperasse uma entrevista. As entrevistas são trocas de palavras em que um formula ao outro perguntas cujas respostas já conhece de antemão.” Das conversas e poucas entrevistas que ficaram gravadas, pode-se extrair revelações sobre o que o autor pensava e sentia.  A citação extensa justifica-se pela beleza do conteúdo e por entender-se que é uma maneira de conhecer um pouco das ideias e personalidade desse grande escritor:
– João, como é que você, que fala com essa absurda simplicidade, usa todo aquele “rebuscamento” para criar um conto?
- Você conhece os meus cadernos, não conhece? Quando eu saio montado num cavalo, por minha Minas Gerais, vou tomando nota de coisas. O caderno fica impregnado de sangue de boi, suor de cavalo, folha machucada. Cada pássaro que voa, cada espécie, tem vôo diferente. Quero descobrir o que caracteriza o vôo de cada pássaro, em cada momento. Não há nada igual neste mundo. Não quero palavra, mas coisa, movimento, vôo. - Fale de seu pai.
- Papai é um homem muito rigoroso. Quando eu era menino me levava pra caçar com ele. Quando eu avistava caça, gritava por papai. Ele vinha correndo e a caça fugia. Um dia papai desconfiou que eu gritava de propósito para que ele não pudesse matar os bichos e nunca mais me levou. Papai era comerciante, está velhinho hoje. Quando eu era garoto pensava que era rico. Lá, em Cordisburgo... eu era. Mas quando precisei ser rico ... cadê?
 - Você não acha que seria bom, para aproximar sua obra do grande público, para que o público venha conhecer melhor Guimarães Rosa gente, falar mais de você?
 - Não. Quero que a minha obra se imponha sozinha. O livro deve ser vendido como toucinho, manteiga. Nunca quis ajuda de pessoas amigas para os meus livros. Deve ser coisa impessoal. A prova da arte é vender-se por si. Eu não crio facilidade, crio dificuldade. Só acredito no eterno. Não quero facilidades. Por isso meu livro “Sagarana” começa com o conto mais difícil. Se eu pudesse só poria, nas capas, as críticas que escrevessem mal de meus livros, para dificultar ainda mais. Tenho tanta confiança de que a minha obra vai crescer com o tempo que sua divulgação não me preocupa. A conversa muda de rumo:
 - Quando vim para a cidade grande, respirei ao ver que a gente não conhece o condutor nem o vizinho. A cidade grande desumaniza... mas depois, humaniza num plano mais alto. Detesto o cotidiano. Pra mim é um suplício comer, fazer a barba, vestir. O todo-dia é um inferno. Não leio jornal na hora. Jornal é angústia concentrada. Só leio matutino à noite... pra dar distância. Vivo para uma coisa maior, um vir-a-ser de uma natureza diferente. A arte permite isso. Permite essa transformação. Por mim os livros não deviam nem trazer nome do autor. O autor devia ser um mistério. - Estamos quase chegando e eu pergunto cretinamente: - Por que você só usa gravata borboleta?
 - Não é pergunta de entrevista, é?
 - Não. É que eu acho que a gravata borboleta define as pessoas.
 - É porque nunca aprendi a dar laço nas gravatas comuns. Acho esta mais fácil.
 Paro o carro, enquanto Rosa termina um pensamento de algo discutido antes:
- Vejo o ser humano como rascunho do que vai ser.
 Ele salta e se despede:
- Desculpe, Bloch. Não fique decepcionado comigo, mas eu não dou entrevista. Você compreende, não é? Não posso magoar os outros.
E fecha a porta do carro, enquanto lhe grito:  - E o Brasil, hem?
 - O Brasil, como?
 - Você não está sofrendo com as surras que estamos levando na Europa em futebol?
 - Eu não leio as derrotas do Brasil. ("Você sabe que eu fui center-half no time do meu colégio?") E ao se afastar: - Só leio jornal quando o Brasil ganha.[5]  

             Guimarães Rosa sonhava em entrar para a Academia Brasileira de Letras. Dizia que precisava provar para sua mãe que era um escritor de verdade e porque não podia negar a glória acadêmica à sua pequena cidade, Cordisburgo. Tentou por duas vezes, até que consegui. Em seu sitio eletrônico, Arnaldo Nogueira Junior informa que:
em 1963 candidata-se, pela segunda vez, à Academia Brasileira de Letras, na vaga de João Neves da Fontoura, e visita acadêmicos, em campanha eleitoral, firmemente decidido a obter vitória. É eleito, em 08 de agosto, por unanimidade, membro da Academia Brasileira de Letras. Misteriosamente, começa a adiar, sine die, a cerimônia de posse. Após quatro anos de adiamento, reflexo do medo que sentia da emoção que o momento lhe causaria, resolve assumir a cadeira na ABL.” – A Academia é muito para mim. Sou tão pequeno como a cidade em que nasci”- Ainda que risse do pressentimento, afirmou no discurso de posse: "...a gente morre é para provar que viveu." O escritor pronuncia seu discurso de posse por 1 hora e meia com a voz embargada. Parece pressentir que algo de mal lhe aconteceria. Com efeito, três dias depois, em 19 de novembro de 1967, ele morreria subitamente em seu apartamento em Copacabana, sozinho (a esposa fora à missa), mal tendo tempo de chamar por socorro (NOGUEIRA JUNIOR, 2013).

             Embora tenha começado a publicar aos 38 anos, com uma bibliografia considerada pequena, Guimarães Rosa conseguiu com sua arte em palavrear, um lugar de destaque na Literatura Brasileira. Esse grande escritor, possuidor de qualidades ímpares como ser humano, distinguiu os seus conterrâneos e reverenciou a Língua Portuguesa. Alcançou o mundo...




[1] O discurso do doutorando João Guimarães Rosa – Sob o foco das lanternas evocadoras – foi publicado no “Jornal Minas Geraes”, órgão da Imprensa Oficial do Estado, em sua edição de 22 e 23 de dezembro de 1930. (ROCHA, Luiz Otávio Savassi. SCRIPTA, Belo Horizonte, v. 5, n. 10, p. 249- 256, 1º sem. 2002).

[2] Aracy Carvalho Guimarães Rosa recebeu do marido uma das homenagens que merecia. É dedicado a ela um dos livros fundamentais da moderna literatura brasileira: "Grande Sertão: Veredas"."A Aracy, minha mulher, Ara, pertence este livro”.
[3] Sobre esse assunto Guimarães Rosa responde a LORENZ: “E agora o que houve em Hamburgo é preciso acrescentar mais alguma coisa. Eu, o homem do sertão, não posso presenciar injustiças. No sertão, num caso desses imediatamente a gente saca o revólver, e lá isso não era possível. Precisamente por isso idealizei um estratagema diplomático, e não foi assim tão perigoso. E agora me ocupo de problemas de limites de fronteiras e por isso vivo muito mais limitado.”
[4] Em 08 de julho 1982, recebe o título de "Justa entre as Nações", concedido pelo Museu do Holocausto de Jerusalém, por salvar a vida de vários judeus, vítimas do nazismo. É considerada o Anjo de Hamburgo, prêmio da ONG B’nai B’rith (instituição judaica). Apenas outro brasileiro, o embaixador Luiz de Souza Dantas (1876-1954), recebeu a mesma honraria, em 2003. A única mulher mencionada no Museu do Holocausto, em Israel e nos Estados Unidos, é importante ressaltar sua existência e exaltá-la na história do Brasil na II Guerra Mundial.(FENSKE, 2011).

[5] Guimarães Rosa, entrevistado por Pedro Bloch e Publicado na revista Manchete, nº 580, de 15/06/1963. [Extraído de: Pedro Bloch entrevista Rio de Janeiro, Bloch, Ed. 1989].

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