Não se pode dizer que tem
amor pela mãe. Nem lembra dela. Morreu cedo. Às vezes, vêm umas imagens que ela tenta capturar, mas não consegue.
Rapidamente as imagens burlam a vigilância e fogem. Nem sente falta dela.
Afinal não tem como sentir falta do que nunca se teve. Há um buraco, que ela
tenta ver do outro lado mas não tem como. É como um vácuo que não consegue
imaginar. Não consegue idealizar o que pode ser um beijo de mãe, um embalo.
Quando criança tinha muito medo de alma penada. E teve que enfrentar esse medo
sozinha. Todas as questões da vida, tanto as pequenas como as grandes, tentou
resolver por si. Decidiu de comum acordo consigo mesma o momento do primeiro sutiã.
E quando virou mocinha, tirou não sabe de onde o conhecimento sobre aquilo.
Algumas respostas vieram com o tempo. Outras nunca obteve. Quando foi mãe
também aprendeu tudo aos trancos. Mas essa é uma história para mais adiante.
Não se pode dizer também que
amou o pai. Não amou. Era um homem
tosco, bebia muito. Frequentemente surrava todos, sem motivo. Hoje, tem pena
dele pela invisibilidade de sua vida. Sente pena porque acredita que o pai
viveu sem saber porque veio a este mundo. Não se lembra de nenhum carinho do
pai, nenhuma palavra amiga, nada. Nenhum gesto de proximidade, quanto mais de
amor, de afeição. Tem uma vaga lembrança de um abraço que dera nele numa
ocasião que veio da capital onde trabalhava como empregada doméstica. Um abraço
truncado meio de lado, sem jeito. Do lado dela era real o sentimento, estava
com saudades. Não se acostumara com a vida em Belo Horizonte. Sentia falta do
quintal, das galinhas, das plantas. Do chão de terra.
Viveu assim, junto com os
irmãos em um ambiente sem amor, sem carinho. Pelos irmãos sente carinho,
preocupa-se com eles. Mais que isso, tenta compreender suas falhas e as próprias
falhas diante deles. Até tenta aceitar,
mas só até aí. Não é capaz de demonstrar mais nada. Será sempre uma pessoa
arredia.
Teve uma pessoa que amou, na
mocidade. Carregou esse amor por anos a fio, por décadas. Um amor não
compreendido, não correspondido. Numa época que namoro era muitas vezes, só de
olho. E foi assim que ela o amou. Nunca o tocou, nem a mão. Lembra das vezes
que foram ao cinema. De alguns filmes. E das balas que chupavam. Isso para ela
era uma prova de amor: ele lhe dava balas. Alguns presentes também que se
acabaram com o tempo, mesmo com o extremo cuidado. Mas são quase cinquenta
anos. Ele casou com outra, teve filhos.
E ela carrregou esta dor, em silêncio. Não falava nele, embora sonhasse de vez
em quando. E aí acordava com sentimento de culpa. Mas não tinha como evitar. Muitos,
muitos anos depois, ela o viu na rua. Percebeu então que o amor havia ficado lá
atrás. Havia uma saudade pelo que
passou. Sentiu uma doce tristeza. Aquele amor por muito tempo era tudo que
tinha e agora não tinha mais nada. Guardou as lembranças no fundo do peito e
seguiu com a vida. Afinal, o mocinho que via nos sonhos estava velho e enrugado
como ela.
Casou duas vezes, mais por
conveniência, por força das circunstâncias. Ainda assim, nas duas vezes pensou
que seria por toda vida. Não foi. Do primeiro casamento nem lembra. Separaram-se
com alguns conflitos, mas que logo se dissolveram. O ex-marido não é inimigo
nem amigo. A única coisa boa foi o filho com quem tem um elo inexplicável. São
iguais em muita coisa.
O segundo casamento foi seu
Karma. Não arrepende por causa dos três filhos, mas prefere nem lembrar do
marido. Foi um tempo de extrema miséria, absoluta miséria e violência. Ela e os filhos vivam com medo e
isso era muito ruim. O medo nos tira a dignidade, diminui nossa capacidade como
humanos. O medo tolhe o instinto da sobrevivência. E apenas algum resquício de esperança será capaz de
impulsionar uma tentativa de reação.
E foi com esse resquício,
com o mínimo de humanidade que ela pegou os três filhos menores e pôs o pé na
estrada. Durante um tempo não dormia com medo das ameças de morte feitas pelo
marido. Andava pelas ruas com os olhos dançando nas órbitas tentando ver além,
buscando todos os homens parecidos com ele, com medo de ser surpreendida. Ficava
sempre grudada nos filhos imaginando que ele os roubaria algum, ou que faria algum mal a eles, por vingança. Passou fome junto com os filhos. Aquela fome que o
estômago gruda nas próprias paredes. Pediu sobra de comida de porta em porta. E
catou muita comida no lixo. Foi um tempo terrível.
Mas nada nesse mundo é para
sempre. Aos poucos, trabalhando dia e noite, com um pé na frente do outro
conseguiu se equilibrar. Viu os filhos crescerem, engordarem. Até que perderam
aquela cor amarela de quem tem fome. Até que o medo acabou e começaram a viver.
É certo que as marcas ficaram. Algumas muito doloridas, que nunca vão se
apagar. Mas vão conseguir conviver com elas. É certo também que perderam muito.
Perderam a fé. Essa, nenhum deles conseguiu recuperar. São tristes,
desconfiados, os quatro.
Os filhos estão tentando
refazer o espírito e construir um mundo de sentimentos. Ela também. Depois de
anos de solidão percebeu que ainda pode ser feliz. Tenta esquecer os longos
anos de miséria e de humilhação. Tenta a
custo recuperar o tempo sem nenhum carinho, sem amor. Talvez consiga. Mas é
certo que mesmo se não conseguir, não terá vivido em vão. Nunca usou a
linguagem da ternura e da feição porque não a conhecera. Mas mesmo sem saber
demonstrar ela amou os filhos, amou o mundo, amou a vida.
Lécia Freitas
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