Acostumado a levantar-se cedo e ir
logo ao Forum, Seu Juca Meirinho ali chegou pouco antes das sete da manhã,
malgrado o frio e a ausência do Juiz de Direito. Sabia da reunião marcada para
as oito horas — entregara, na véspera,
por ordem do Dr. Damasceno, a chave da porta de entrada do sobrado ao
Sargento-Ordenança — e desejava, agora,
pôr-se à disposição do delegado militar. Abriria o café do vão da escada
e, vez ou outra, acharia desculpa para ir até o andar de cima, conforme
recomendara o doutor, a fim de verificar se não tentavam fuçar pelo quartinho
fechado, cheio de roupas e outras coisas particulares, além de tanto livro e
papelada.
A porta estava aberta, de sentinela embalada.
Mais velho que o sobrado — era o Juca Meirinho varredor e cafeteiro no antigo Fórum, e já rapazote e já taludo, quando da construção e instalação do novo — o prédio acabou como por ser casa, coisa sua, e o oficial de justiça foi entrando, distraído, pensando no café do Capitão e das outras pessoas por chegar.
Mais velho que o sobrado — era o Juca Meirinho varredor e cafeteiro no antigo Fórum, e já rapazote e já taludo, quando da construção e instalação do novo — o prédio acabou como por ser casa, coisa sua, e o oficial de justiça foi entrando, distraído, pensando no café do Capitão e das outras pessoas por chegar.
—Alto! — o
cavalariano atravessou-lhe o passo.
Assustado com o berro, a feia catadura e a
declarada má-inclinação da sentinela — a
fera estava armada de máuser, sabre e mosquetão, as cartucheiras pesadas de
tanta bala mal pôde o Juca Meirinho gaguejar:
— Mas eu sou
o oficial de justiça... O doutor... O Doutor Juiz de Direito...
—Aqui não
tem juiz de direito nenhum! O Forum ’tá requisitado. Se arretire
O jeito era
afastar-se, como ordenava o soldado, e foi o que fez o Juca, sem abrir mais a
boca, cruzando a Praça e indo postar-se na esquina da confeitaria. Quando
aparecesse o Capitão reclamasse o café, que viessem ali chamá-lo... E, se o
homem azedasse, paciência!: o volantezinho malcriado da porta do Forum, então,
que ouvisse...
Erguia-se a manhã, ainda fria e nevoenta, e
principiava a encher-se o Largo das Mercês. Abriam-se as portas da Confeitaria
do Cucute, as das lojas e outras casas
de negócio — abriam-se as janelas dos
sobrados que davam para a Praça. Iam e vinham as normalistas — descia dos altos o povo do comércio, subiam
os que voltavam do Mercado.
Encostava-se
ao ponto o primeiro carro-de-praça, quando o relógio da Matriz deu as sete
horas, e começou a apitar a serraria-carpintaria do Seu Costinha da
Força-de-Luz, lá no Alto da Estação.
Mais um dia! — pensava o Juca Meirinho, de pé na esquina,
curtindo a mágoa causada pelos gritos da sentinela. Felizmente, porém, o
Governo já havia mandado chamar, com urgência, o doutor... Seu Polinésio
da Estação falara, muito em segredo, na véspera, depois que partira o Dr.
Damasceno, sobre um telegrama do Dr. Tancredinho para o pai, o Coronel
Americão: as coisas, na Capital, corriam bem, pois o rapaz se declarava muito
satisfeito... Decerto a viagem o Dr. Damasceno Soares era para fecharem, por
lá, algum acordo, acertarem tudo com o Coronel Americão, mandarem embora o
Capitão Eucaristo e a soldadesca dele...
Sim
— concordava com Seu Polinésio da
Estação o Juca Meirinho — o Dr.
Damasceno, pessoa tão religiosa, não podia estar apoiando, no íntimo, as
barbaridades da Captura: o Dr. Jojoca, coitado
— criatura tão alegre, um mão-aberta, brincalhão... O inofensivo do
Quincota, esse, o mal dele era somente aquela mania de futricar, meter a
colherzinha-torta onde não devia... Que limpassem a cidade do banditismo,
que se pusesse um freio aos abusos do Coronel Americão Barbosa... — havia mesmo necessidade de um pouco mais de
energia por parte do Governo...; mas sem tanta malvadeza e violência! Prenderem
o Clodulfo era merecido: culpado de tudo, o alma-negra de Santana do Boqueirão,
o espírito-mau que atuava na sombra... Sim. Precisavam de acabar com tanto
crime, tanta jagunçada: não passava uma semana sem nova façanha da quadrilha do
Cludolfo: a última — Santana do
Boqueirão inteirinha já sabia dela — a
história do José de Arimatéia em Campanário...
Passou pela esquina o Xico das
Moças murchozinho, as mãos cruzadas nas costas, olhando pro chão, parecia até
que falando sozinho. Oito filhas-mulheres, o azarado! E todas solteiras
ainda... Decerto nem dormir ele não podia mais, com o fechamento da Lotérica...
Viver, agora, de que, o pobre do Seu Xico? Sustentar de que maneira a mulherada
em casa, se a única ocupação que sabia ele desempenhar era vender bilhete e
encher talão de bicho?!
Chegou à esquina. Seu Lamartine da Farmácia, o
Brasilino da Tinturaria, o Aracífico da Gráfica. De charrete, passou o Zé da
Vó, carregado de menino, vindo da chácara, com certeza. Outro que perdera
a minazinha, o Zé da Vó: o ponto mais movimentado do centro da cidade, o
invejado Elefante de Ouro, com mais de vinte cambistas... Além do bicho, o
víspora, e mais o buzo e o jaburu nos fundos...
Deus havia de ajudar porém, suspirou o Juca
Meirinho. O Dr. Damasceno acharia jeito de normalizar, na Capital, a ruim
situação, deixar, pelo menos, aberto o jogo... Ali estava ele sim, ele
também, Seu Juca Meirinho do Forum — com
um rombo danado na feriazinha... Brincando, brincando, eram lá os seus oitenta,
os seus cem-mil-réis o que rendia, em comissão, e todo mês, o talãozinho dos
advogados e do pessoal aos cartórios —
justo o que pagava do aluguel de casa.
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Os primeiros a chegar — passava pouco das sete-e-meia — foram o Capitão Eucaristo Rosa e o Sargento
Hermenegildo. De passo descansado atravessaram pelo meio do Largo sem se
deterem na esquina ou na confeitaria e entraram logo no Forum.
A notícia
da reunião correra pela cidade, e começava a juntar mais gente na Praça, nas
portas das casas de comércio, nas janelas. Próximos do Forum, na calçada, a
porção de cavalarianos do Destacamento de Capturas, armados e municiados
fartamente se via pelas cartucheiras estufadas, pendentes dos cinturões. Demonstração de força — era o comentário geral. Maneira d’o Capitão
Eucaristo obrigar o Coronel Americão a ceder a tudo, sujeitar-se por completo
às imposições, entregar à Captura os jagunços que faltavam. Todos já estavam a
par das boas notícias mandadas ao pai pelo Dr. Tancredinho, e do telegrama,
também, chamando o Juiz de Direito. Não demoraria a ordem para que a
Captura se retirasse de Santana do Boqueirão. E o Capitão Eucaristo aproveitava
o pouco tempo que lhe restava: iria embora, iria, mas depois de dobrar a
arrogância do Coronel Americão, deixar o chefão de Santana humilhado,
desmoralizado por completo...
Cederia o Coronel? Afinaria frente
ao aparato da Captura e às ameaças do Capitão? — perguntavam, a si mesmos e uns aos outros,
os santanhenses reunidos no Largo das Mercês, parados de curiosidade e
expectativa.
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Não eram ainda as oito horas quando apontaram na
esquina do alto da Praça — certamente
que vindos da casa do Coronel Américo Barbosa, concentrados ali, primeiramente — os chefes do Diretório convocados pelo
Capitão Eucaristo Rosa. Quase todos, ausente do grupo apenas Seu Valério
Garcia, o Delegado Municipal. Na frente, os principais: o Coronel Americão e o
Coronel Calixtrato, este de bengala e chapéu-panamá, emproadão e pedante como
sempre. Atrás, os outros três: o Major Hipólito, Seu Josué Malaquias e o
Coronel Ludgero Alves.
Desciam o Largo pela calçada da Força-e-Luz,
atravessavam-no junto ao ponto dos carros-de-praça, passaram pelos soldados
espalhados nas imediações do Forum. Entraram no sobrado como se em um
daqueles dias de eleição, na hora de encerrá-la, lavrarem as atas e combinarem
o foguetório, a passeata... — alguém se
lembrou. Sim, apenas os chefes do Diretório do Coronel Américo Barbosa
podiam, nessas ocasiões, entrar no edifício guardado pelos jagunços de
carabina: a oposição que esperasse do lado de fora, se estrebuchando de raiva,
ciente já do resultado...
À porta do sobrado, a sentinela; dentro, no saguão
dos cartórios e ao pé da escada, outro volante um cabo, embalado também. Ninguém
mais.
— Podem
subir... — o Cabo Zeca Branco disse. — O Capitão já ’tá esperando lá em cima.
Subiram os dois lances da escadaria. No topo, à
porta do salão de júri, o Sargento Hermenegildo:
— Os
senhores entrem... Vou avisar o Capitão Comandante... Mas, ’tá faltando um ...
— Seu Valério Garcia já deve de ’tar chegando — o coronel Americão disse. Mandou me avisar
que vinha direto pr’aqui... Ele mora logo em frente, na esquina da igreja...
Os cinco assentaram-se em torno da mesinha onde o
Juiz de Direito costumava presidir às audiências e ouvir as testemunhas. O
Sargento apressou-se em vir avisar o Capitão da chegada do coronel e
companheiros. O Delegado Especial Militar estava no gabinete reservado, do
Doutor Juiz de Direito — o Sargento
Hermenegildo explicara, antes de deixar o salão.Demorou-se, porém, muito pouco,
voltando com a ordem do Capitão Eucaristo:
— O Capitão
Comandante quer falar primeiro com o Coronel Américo Barbosa... Em
particular...
Vazio o corredor, apenas mais outra sentinela —um praçazinho miúdo, preto tal qual o
Sargento Hermenegildo —, essa colocada junto à porta fechada do
gabinete do Juiz — o Coronel Américo
Barbosa observou, enquanto caminhava seguido do Ordenança. O soldadinho
entreabriu a porta, esperou que o coronel entrasse, espremido, por ela, e
fechou-a novamente. O Sargento voltou ao salão de júri.
Correram alguns minutos. A sentinela foi então quem
veio chamar:
—É para ir
também o Coronel Calixtrato.
—Me
acompanhe! ríspido, feio, o Sargento Hermenegildo ordenou.
Lá se foi também, chapéu-panamá e bengalão nas
mãos, escoltado pelo Ordenança, o Coronel Calixtrato Barbosa. A sentinela abriu-lhe
meia porta —repetiu a cerimônia — e o Agente Executivo de Santana do
Boqueirão entrou na saleta do fundo do corredor.
Nesse meio-tempo, o Coronel Ludgero Alves,
incomodado com a demora do Valério Garcia
— já havia dadas oito horas o relógio da Matriz — levantara-se e fora até a uma das janelas
do sobrado para olhar o Largo. Espiou, primeiro, para o relógio cinco
minutos já de atraso! e avistou, em seguida, o Valério que cruzara o jardim,
apressado, pelos lados do coreto
—O Coronel
Ludugero! — chamou, alto, da porta do salão, o Sargento Hermenegildo, depois de
receber outro recado da sentinela. — Me
acompanhe!
Tratados que nem menino de
escola!... — mal se continha, remoendo o ódio, o velho Coronel Ludugero Alves.
Fazendo chamada, o atrevidaço do Capitão, e por um crioulão boçal daqueles...
Mas deixou a janela e acompanhou o Ordenança pelo
corredor. Chegados à porta fechada do gabinete do Juiz de Direito, a sentinela
levou a mão à maçaneta. Foi quando o
Coronel Ludgero Alves viu então: debaixo da porta, infiltrando-se pela fresta
rente ao assoalho, a coisa começava a escorrer sobre as tábuas — larga e grossa, e vermelha
bicazinha... Sangue! — o velho,
de instantâneo, tudo percebeu: o Americão, o Calixtrato!... Num arranco
inesperado para trás, conseguiu esgueirar-se por entre o sargento e a
sentinela, e tropegar rumo à escadaria:
—’tão matando a gente! ’tão matando! — o Coronel Ludgero disparou a gritar que nem
um alucinado.
Mas não conseguiu alcançar nem o fim do primeiro
lance da escada, lento de pernas, idoso demais para vencer os degraus estreitos
e quase a pique. Alcançado pela linda pontaria do Sargento Hermenegildo, caiu
por ali mesmo, picado pela rajada seca dos terríveis tiros curtos, de aço, de
pistola-máuser.
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Logo ao primeiro grito do Coronel Ludgero Alves,
muitas portas, até então fechadas, se escancararam, ali por dentro do casarão
do Forum. Do gabinete reservado, onde haviam sido massacrados os coronéis
Americão e Calixtrato, saíram três cavalarianos, mascarados de sangue,
machadinha em punho um deles o Cabo Salvador, o que, trepado na cadeira
colocada atrás da porta, fora incumbido de golpear, em primeiro e na cabeça, à
medida que entravam os condenados ao abate, conduzidos um por um pelo Sargento
Hermenegildo. O Capitão Eucaristo Rosa, esse rompeu, carabina engatilhada,
do banheiro pegado ao quarto de dormir do Juiz de Direito, na outra ponta do
corredor. Da saleta dos advogados, vizinha ao salão do júri, do cômodo ao
lado da escadaria depósito da papelada velha dos cartórios das sentinas do
andar de baixo, do café de Seu Juca Meirinho... — de todos os cantos e desvãos saltaram os
volantes da Captura, açulados mais ainda pelos tiros da pistola do Ordenança.
Encantoados no salão, restava ao Major Hipólito e
ao Josué Malaquias apenas a janela aberta pelo Coronel Ludgero, na hora em que
fora ele olhar as horas e a Praça,
preocupado com o atraso de Seu Valério. Para ela arremeteram-se os dois. Das
sacadas dos outros sobrados da Praça, das esquinas e calçadas, viram-nos tentar
a escapada... a desesperada proeza de quererem galgar o peitoril, montá-lo,
atirarem-se janela abaixo. Os pobres: velhos, encarangados de juntas... Muita
gente assistiu aos dois como que a lutar um com o outro, se atrapalharem, se
espremerem... enquanto, de dentro do sobradão, recomeçavam os tiros, rápidos,
repetidos. Sim, venceram o parapeito da janela, galgaram-no sim, o Josué
Malaquias e o Major Hipólito: transpuseram-no, precipitaram-se daquela
altura... mas alçados e empurrados, depois de fuzilados pelas costas, arrojados
fora pelos soldados lá de cima, para virem espatifar-se na calçada de pedras do
Largo das Mercês.
Seu Valério Garcia tudo
presenciou, parado no meio do Largo, estupidificado, como que estuporado da
cabeça aos pés. Somente se mexeu para cair, derrubado por um balaço vindo dos
altos do Forum — um coice de burro, de
veloz, certeiro e rijo — que o atingiu
na boca do estômago, quase que no centro exato da cintura.
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Ocupar
toda a praça fronteira ao Forum, guarnecer os cantos do jardim, as esquinas do
Largo, evacuar, limpar completamente as imediações do Forum, isso foi obra de
instantes para o treinado e ágil Segundo Destacamento do Capitão Eucaristo
Rosa.
Quando o oficial desceu o degrau de entrada do
sobrado, acompanhado do Sargento Hermenegildo, muitos santanhenses lograram
vê-lo, uns através de frestas de janelas, outros por debaixo das mesas ou
amoitados atrás do balcão da Confeitaria do Cucute. E ouvi-lo berrar para
alguns volantes da Captura que se abeiravam dos corpos estendidos no
paralelepípedo e lajes da calçada:
— Se afastem! Entrem em forma! Os parentes que
tomem conta!
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Muitos,
muitos anos depois, e Seu Valério Garcia ainda contava, para quem quisesse
ouvir, como escapara à chacina de catorze de maio, em Santana do Boqueirão:
— Foi Seu Genésio, atacadista de pinga e rapadura,
quem me segurou em casa, desde manhã cedo, fecha-não-fecha a compra da safra do
Pinhém daquele ano. Se aproveitava, o velhaco, da minha pressa, mo’de a
reunião... Me atrasou, acabou levando um vantajão no negócio, mas me salvou a
vida, o Seu Genésio...
E também mostrava, para quem quisesse ver, o
relógio de algibeira — um patacão de
ouro, pateque, redondão e grosso — com a bala de carabina, de chumbo, encravada
bem no centro:
— Parece
até milagre, mas o soldado chegou a me enfiar o pé por debaixo do pescoço... Eu
’tava de bruço’, e ele ia começando a me desvirar, no chão, a ponta de
bota... Na horinha em que o Capitão Eucaristo gritou aquela abençoada
ordem!
Mário Palmério em Chapadão do Bugre
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