domingo, 10 de agosto de 2014

" A POÉTICA ROSEANA" Capítulo 5.6

5.6 Recursos de Linguagem


                                                                                 Buriti, buriti e a sempre-viva-dos-gerais que miúdo viça e enfeita: o mundo é mágico!
João Guimarães Rosa

           
            A construção verbal de Grande Sertão: Veredas constitui toda a beleza contida na obra. O autor se esmera e perfaz o espetáculo, em um processo de reinventiva da língua em que se mesclam o erudito, o popular e o sertanejo. o amalgama roseano funda uma nova linguagem que, inclusive, expressa a si mesma, sendo ela a forma e o conteúdo. Devido à potência dessa linguagem  criada pelo autor,  torna-se trabalhosa e  demorada a  análise de todos os recursos utilizados na
escrita de Grande Sertão: Veredas. Sendo assim, decidiu-se por sinalizar os mais significativos para a presente pesquisa.
            Na revolução linguística de Guimarães Rosa, destaca-se, entre outros, a renovação sintática, sobre o que a estudiosa Maria Betânia Diniz Ferreira, afirma:
na estruturação da sintaxe o autor faz emprego da síntese (concisão) redução e solidez para a escrita de muitas das frases. Há uma diversidade de períodos curtos, com predomínio de coordenação e justaposição de frases no percurso: [...] me alembro, meu é. Ver belo: o céu poente de sol, de tardinha, a roseia daquela cor. E lá é cimo alto: pintassilgo gosta daquelas friagens. Cantam que sim. Revejo. Flores pelos ventos desfeitas. Quando rezo penso nisso tudo. Em Santíssima Trindade. / A ver, Diadorim, a gente ia indo, nós dois, a cavalo, o campo cheirava, dez metros de chão em flor. (FERREIRA 2006, p. 30-34).
            É possível constatar, na obra, que Guimarães Rosa associa um número de orações, dentro de um período, sem utilizar conetivos, pronomes relativos ou preposições, optando pela forma justaposta. Através da influência  da linguagem oral e de um processo de associações de ideias, o autor revela uma preferência pela coordenação sobre a subordinação.
            Outro recurso utilizado pelo autor, e que singulariza a sua obra, são os neologismos. Conceitua-se o termo, de acordo com Domingos Paschoal Cegalla  como palavra ou expressão nova (2005, p. 607). Porém, o que se pode perceber que nesse processo, na obra Grande Sertão: Veredas, de acordo com Ferreira é que:
os neologismos não são criados por meio de significantes completamente novos, não se marcam como criações arbitrárias, independentes, dissociados das palavras já existentes na língua, mas sim, resultam da combinação lógica de palavras, para assim renovar o significante e o significado. (FERREIRA, 2006, p. 33).
                      Pode-se constatar esse procedimento do autor, ainda de acordo com os estudos de Ferreira em:
Com uso de prefixação
[...] me chamou  adeparte (reservadamene) [...]  /  [...] deerrados ( pelo rumo errado) [...]  /  [...] desviveu num átimo (morreu) [...]  /  [...] certa altura regrossa ( muito grossa) [...]  /  [...] sobredentro de minhas ideias ( bem por dentro) (grifos nossos).
Com uso de sufixação:
[...] assoviamzinho sutil (assovio pequeno) [...] / [...] daí quis assuntação (apurar em detalhes) [...] / [...] Essezinho, essezim desde que o entendimento alumiou ele (diminutivos do pronome demonstrativo esse) [...] / [...] os usares (hábitos) [...]  /  [...] Seria velhaçal (muito envelhecido) [...] (grifos nossos).
Com uso de  justaposição:
[...] não tinha almaviva de se ver (ninguém presente) [..,]  /  [...] Depô-depois (muito após) [...] / [...]Diadorim se maisfez, avançando (se adiantou) [...]  /  [...] que malamal aceitei (muito mal) [...]  /  [...] pé-pubo (pé com frieira) [...]  /  [...] era quase sonoite (um pouco escuro) [...] (grifos nossos).
Com uso de aglutinação
[...] adforma vinha na ignorância (a+de+forma = d forma que) [...]  /  [...] baleado à traição, o maldelazento (maldito, repugnante como se tivesse lepra) [...]  /  [...] nenhão (fusão de não com nenhum) [...]  /  [...] não faz vivalei em mim (não aplique a pena de morte) [...]  /  [...] nãostante (não obstante) [...] (grifos nossos).

            É consenso entre os leitores, a afirmação da dificuldade de entendimento da obra devido ao linguajar inovador e ao exotismo dos vocábulos. Faz-se necessária uma atenção especial no contexto da narrativa, para descobrir-se a significação de termos, tais como:
esse menino não dura, está no blimbilim (final da vida) [...] / [...] me aperreava os coscuvilhos (fofoca, mexerico) [...]  /  [...] nimpes nada eu não podia aceitar (reforço da negação) [...]  /  [...] pirlimpim pimpão (efeito de aliteração) [...] / [...] Diadorim me chamou, fomos caminhando no meio da queleleia do povo (barulheira, agitação) [...]  /  [...] aquilo sucrepa (abala-se) [...]  /  [...] didideia (pensamento ruim) [...] (grifos nossos). (ROSA, 2006).
            Pode-se perceber, nessa citação, que Guimarães Rosa pretendia estimular a imaginação do leitor, no ato da leitura. O escritor não hesitava em trocar a categoria das palavras, desde que o efeito expressivo de cada uma delas se tornasse mais significante em outra função gramatical.
            Outra particularidade, na obra, diz respeito à criatividade do autor quanto à escolha dos nomes e apelidos das personagens, alguns tão estranhos quanto cômicos:
Alarico Totõe, Borromeu, Doristino, Fafafa, Fonfrêdo, Guirigó, Jidião Guedes, Rotílio Manduca, Rosa’uarda, Sesfredo, , Sêo Vulpes, Sidurino Suzarte, Tipote, Tuscaninho Caramé, Zé-Zim, Quelemém, Nhô Maroto, Nhorinhá, Andalécio.(ROSA, 2006).
            Deve-se assinalar que alguns desses nomes eram comuns no interior de Minas Gerais, principalmente aqueles que apresentavam hibridações dos nomes dos pais ou parentes, como pode ser o caso Rosa’uarda, Sesfredo e Quelemém, e também, pela omissão de fonemas na pronúncia como pode ser o caso de Totõe, Nhô, Zé-Zim, entre outros. Os topônimos escolhidos pelo autor também eram bem singulares, como se comprova com esses exemplos retirados da obra:
Barbaranha Cererê Velho, Chapada do Covão, Chapada-da-Siriema-Correndo, Jalapão, Liso do Sussuarão, Os-Porcos, Sucruiú, Serra do Cafundó, Serra do deus-me-livre, Urubu, Vereda-da-Vaca-Mansa-de-Santa-Rita, Veredas Mortas, Vila da Pedra de Amolar, Tamanduá-Tão. (ROSA, 2006).
            Certamente, com o passar do tempo houve mudanças nesses nomes  o que  mereceu um comentário de Riobaldo: “Como é que podem remover uns nomes assim?¹ Nome de lugar onde alguém já nasceu  devia de estar  sagrado.” (2006, p.42)
            Muitos desses nomes, de pessoas e de lugares, reporta-se aos arcaísmos² que, segundo Cegalla, “são falares regionais que se apresentam de um modo antiquado” (2005, p. 80). Na obra Grande Sertão: Veredas esses também se configuram como recursos de linguagem,  utilizados pelo escritor, no processo de reconstrução da sua  linguagem. É interessante assinalar que alguns dos termos observados, na obra, ainda são usados por pessoas mais idosas  do interior de Minas Gerais:
[...]  ia  adjutorar   o padre  (ajudar) [...] / [...] A vida é só  brabeza  (braveza) [...] / [...] bobeia  minha (bobeira) [...] /  [...] bebedice de amor (bebedeira)  [...] / [...] fazia a mor bem descida (maior) [...] /  [...] Nanja não queira me alembar (de forma alguma e lembrar) [...] / [...] ossoso (ossudo) [...] / [...] uma serepente malina (serpente maligna) [...] / [...] a qualidade do sofrente (sofredor) [...] Oséquio feito [...]  /  [...] Tomém peço licença, sôs chefes. [...] / Assim vós prazido, chefe. [...] / por esquipático mesmo no simples [...] / [...] por osséquio, o senhor doutor [...] / (ROSA, 2006) – “Ossenhor utúrge, mestre, a gente vinhemos, no graminhá... O senhor utúrge...” (ROSA, 2006, p. 385) (grifos nossos).




¹ Mesmo nos dias atuais, ainda consta existirem nomes diferentes, tais como esses, na região de Pará de Minas:  Muquém, Cova d’Anta, Colombo do Gaia, Pindaíba, entre outros.
²Queremos, entretanto, ressaltar que a estranheza causada pela leitura de um texto rosiano, nem sempre fica por conta dos neologismos e alterações no léxico. Muitas palavras usadas são de uso corrente no ambiente a que se refere o texto, embora estranhas ao linguajar a que está habituado o leitor. Muitas expressões criadas pela necessidade e conveniência do usuário e também muitas expressões arcaicas de uso comum na região, embora estranhas à maioria da população das grandes cidades brasileiras. (Ruy Perini 2005 Espéculo. Revista de estudios literarios. Universidad Complutense de Madrid)

Lécia Freitas


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