2.3 O Amor e a Neblina
(O Fio Condutor)
Como
já se disse anteriormente, entre os temas existentes em Grande
Sertão: Veredas, um
se destaca naturalmente: o amor de Riobaldo e Diadorim. Embora o autor retrate
o sertão e as lutas travadas pelos jagunços, os numerosos casos sobre a vida
dos moradores daquela região e o suposto pacto de Riobaldo com o Diabo, todo o entrelaçar, refere-se ao amor dos
protagonistas.
Riobaldo ao contar a sua vida a um senhor da cidade, conduz os acontecimentos,
mesmo que nos volteios, à figura de Diadorim. Com isso, considera-se que o fio
condutor da obra é a história dos dois jagunços:
ao que, alforriado me achei. Deixei
meu corpo querer Diadorim; minha alma? Eu tinha recordação do cheiro dele.
Mesmo no escuro, assim, eu tinha aquele fino das feições, que eu não podia
divulgar, mas lembrava, referido, na fantasia da ideia. Diadorim – mesmo o
bravo guerreiro – ele era para tanto carinho: minha repentina vontade era
beijar aquele perfume no pescoço: a lá, onde se acabava e remansava a dureza do
queixo, do rosto... Beleza – o que é? E o senhor me jure! Beleza, o formato do
rosto de um: e que para outro pode ser decreto, é, para destino destinar... E
eu tinha que gostar tramadamente assim, de Diadorim, e calar qualquer palavra.
Ele fosse uma mulher, e à-alta e desprezadora que sendo, eu me encorajava: no
dizer paixão e no fazer – pegava, diminuía: ela no meio de meus braços! (ROSA,
2006, p.576)
Riobaldo
não tinha intenção de ser jagunço. Ele toma essa decisão ao reencontrar o
Menino do Porto, já rapaz, em suas andanças pelo sertão:
Pois minha vida em
amizade com Diadorim correu por muito tempo desse jeito. Foi melhorando, foi.
Ele gostava, destinado, de mim. E eu – como é que posso explicar ao senhor o
poder de amor que eu criei? Minha vida o diga. Se amor? Era aquele latifúndio.
Eu ia com ele até o rio Jordão...Diadorim tomou conta de mim. (ROSA, 2006 p.
193)
Ao enfrentar situações adversas em que o padecer sofrível é intenso,
Riobaldo pensa em deixar a jagunçagem. Porém, o amor é mais forte e ele
continua para ajudar Diadorim em sua vingança contra Hermógenes, o assassino do
pai. “Para poder matar Hermógenes era que eu tinha conhecido Diadorim, e
gostado dele, e seguido essas malaventuranças, por toda parte?”(ROSA, 2006, p.
541). Por vezes, Riobaldo questiona a sua condição de jagunço e a razão dos
atos praticados pelo bando:
e eu não tardei no meu querer: lá eu não podia mais
ficar. Donde eu tinha vindo para ali, e por que causa, e, sem paga de prêço, me
sujeitava àquilo? Eu ia-me embora. Tinha de ir embora. Estava arriscando minha
vida, estragando minha mocidade, Sem rumo. Só Diadorim. Quem era assim para mim
Diadorim? Não era, aquela ocasião, pelo próprio dito de estar perto dele, de
conversar e mais ver. Mas era por não
aguentar o ser: se de repente tivesse de ficar
separado dele, pelo nunca mais. (ROSA, 2006 p. 181)
Na
primeira vez em que foi nomeado Chefe, ele recusa, declarando que não sabe dar
ordens, apenas obedecer. “_ Não posso, não quero! Digo definitivo! Sou de ser e
executar, não me ajusto de produzir ordens...” (ROSA, 2006 p. 81). Sua intenção
era apenas ficar ao lado de Diadorim. Por isso, ele o procura com o olhar,
busca sua presença:
desistir de Diadorim, foi o que
falei? Digo, desdigo. Pode até ser, por meu desmazelo de contar, o senhor
esteja crendo que, no arrancho do acampo, eu pouco visse Diadorim, amizade
nossa padecesse de descuido ou míngua. O engano. Tudo em contra. Diadorim
e eu, a gente parava em som de voz e alcance dos olhos, constante um não muito
longe do outro. De manhã à noite, a afeição nossa era duma cor e duma peça.
Diadorim, sempre atencioso, esmarte, correto em seu bom proceder. Tão certo de
si, ele repousava qualquer mau ânimo. (ROSA, 2006 p. 186).
Riobaldo
tenta prendê-lo e pede para irem embora juntos para bem longe. Contudo Diadorim
recusa: ele quer vingar a morte do pai. Sente-se preso a essa promessa e
Riobaldo não tem outra saída senão ajudá-lo:
– Por vingar a morte de Joca Ramiro,
vou, e vou e faço, de consoante devo. Só, e Deus que me passe por esta, que
indo vou não com o meu coração que bate
agora presente, mas com o coração de tempo passado...E digo...
– Por teu pai vou, amigo,
mano-oh-mano. Vingar Joca Ramiro... (ROSA, 2006, p. 533- 65).
Até o desfecho, todos os fatos permeiam-se com a presença ou a lembrança
de Diadorim. Todas as emoções de Riobaldo têm como premissa esse amor, ainda que proibido, forte, profundo a ponto
de nortear o caminho de Riobaldo. Ele se
perguntava: “De que jeito eu podia amar
um homem, meu de natureza igual, macho em suas roupas e suas armas, espalhado
rústico em suas ações o fato?!” (ROSA, 2006, p. 495) “Que vontade era de pôr
meus dedos de leve, o leve, nos meigos olhos dele.” (ROSA, 2006, p. 46) “[...]e quase uma ânsia de sentir o cheiro do
corpo dele, dos braços.” (ROSA, 2006, p. 147) “Diadorim é minha neblina,”
(ROSA, 2006, p. 24) “[...] e eu gosta dele, gostava, gostava... (ROSA, 2006, p.
156)
meu corpo gostava de
Diadorim. Estendi a mão, para suas formas; mas, quando ia, bobamente, ele me
olhou – os olhos dele não me deixaram. Diadorim sério, testalto. Tive um gelo.
Só os olhos negavam. Vi – ele mesmo não percebeu nada. Mas, nem eu; eu tinha
percebido? Eu estava me sabendo? Meu corpo gostava do corpo dele, na sala do teatro.
Maiormente. As tristezas ao redor de nós, como quando carrega para toda a
chuva. (ROSA, 2006 p. 182).
Por isso o desespero com o desenlace. A dor diante da
verdade.
eu conheci! Como em todo o tempo antes eu não contei
ao senhor – e mercê peço: - mas para o senhor divulgar comigo, a par, justo o
travo de tanto segredo, sabendo somente no átimo em que eu também soube ...Que Diadorim era o
corpo de uma mulher perfeita... Estarreci. A dôr não pode mais do que a
surpresa. A côice d’arma, de coronha. [...] Foi assim. Eu tinha me debruçado na
janela para poder não presenciar o mundo. (ROSA, 2006, p. 599).
Ao final, em uma fala que transcende a emoção, numa
das mais belas páginas do livro, o narrador exclama: “Ela tinha amor em
mim”.(ROSA, 2006, p. 600) E como se a tristeza aumentasse com o final do dia: “E aquela era a hora do mais
tarde. O céu vem se abaixando.” (ROSA, 2006, p. 600) E o fim da história:
narrei ao senhor. No que narrei, o
senhor talvez até ache mais do que eu a minha verdade. Fim do que foi.
Aqui a estória se acabou.
Aqui a estória se acaba.
Aqui a estória acabada. ( ROSA,
2006, p.600).
Todos os acontecimentos que retomavam
o sentimento dos dois, numa gradação de emoções, culminaram com o ato final da morte de
Diadorim. A partir daí o que se sucede são apenas as conclusões:
como se, tudo revendo, refazendo, eu
pudesse receber outra vez o que não
tinha tido, repor Diadorim em minha vida? O que eu pensei o pobre de mim. Eu
queria me abraçar com uma serrania? Mas, nessa parte, de muito mal me lembro,
pelo revés em minha saúde. (ROSA, 2006
p. 601).
Após
a morte de Diadorim, em duelo travado à faca com Hermógenes, Riobaldo
transforma-se em outro homem. Depois de passar por um problema de saúde, ele é
procurado por Otacília que quer se casar com ele. Riobaldo pede para que ela
espere, pois, tem que esquecer aquele
outro amor que foi tudo na sua vida.
Depois
de algum tempo, Riobaldo casa-se com Otacília e passa a ter uma vida comum de fazendeiro, nas fazendas que
herdou do padrinho e “sem pequenos dessossegos, estou de range rede. E me
inventei neste gosto, de especular idéia. (ROSA, 2006, p. 10) Talvez para
entender o que lhe aconteceu. Nesse devir percebe-se a gratidão à esposa, Otacília. Mas ao falar dela usa uma
linguagem comum. Aquela linguagem que usava para se referir à Diadorim ficou no
passado com todo o encanto daquele amor que não acabou: ficou apenas “envolto em neblina”.
Diadorim também, que dos claros
rumos me dividia. Vinha a boa vingança, alegrias dele, se calando. Vingar, digo
ao senhor: é lamber frio, o que o outro cozinhou quente demais. O demônio diz
mil. Esse! Vige mas não rege... Qual é o caminho certo da gente? Nem pra frente
nem pra trás: só para cima. Ou parar curto quieto. Feito os bichos fazem. Os
bichos estão só é muito esperando? Mas, quem é que sabe como? Viver?... O
senhor já sabe: viver é etcétera...Diadorim alegre, e eu não. Transato no meio
da lua. Eu peguei aquela escuridão. E de manhã, os pássaros, que bem-me-viam
todo o tal tempo. Gostava de Diadorim, dum jeito condenado; nem pensava mais
que gostava, mas aí já sabia que gostava em sempre. Ôi suindara! –
linda cor... Ah, Diadorim...(ROSA, 2006 pp. 94- 91).