sábado, 12 de julho de 2014

"A POÉTICA ROSEANA" Capítulo 5.5.2

5.5.2 O tempo em Grande Sertão: Veredas ... 

                                                                                    Foi em  fevereiro ou janeiro, no tempo do pendão  do milho.
João Guimarães Rosa

            O tempo é um elemento decisivo na narrativa. Ele pode ser cronológico quando segue o relógio e determina que a ação e o espaço sejam exteriores, podendo ser observado pelas personagens. Quanto ao tempo psicológico,  define-se como  interior e se passa no consciente ou subconsciente de uma ou mais personagens, sendo chamado também de metafísico.
            Na obra, o autor utiliza a técnica do flasback, ou seja, a retomada de um acontecimento no passado. O narrador tenta recompor sua vida, através das lembranças do  passado  que é remexido e relatado por Riobaldo. Na esperança de encontrar respostas para os seus questionamentos, o narrador descreve o que aconteceu quando ainda era jagunço, chegando a liderar o bando no “sertão das Gerais”.  Esse tempo encontra-se em pretérito perfeito, demonstrando que os fatos já pertencem a um passado findo.
            Na obra, pode-se constatar a passagem do tempo, ou cronológico, em fragmentos do texto,  como: “De manhazim – moal de pássaros em revôo, e pios e cantos – a gente toda discorria, se esparramava, atarefados, ajudando para o derradeiro.” (ROSA, 2006, p. 46); “O dia estava clareando completo.” (ROSA, 2006, p.120); “De verdade entardecia.” (ROSA, 2006, p. 376); “Ao quando bem anoiteceu.” (ROSA, 2006, p. 376); “Na surgida manhã, saímos, para a parte final da caminhada.” (ROSA, 2006, p.376); “Sombra de sombra, foi entardecendo.” (ROSA, 2006, p.418); “Foi orvalhando. O ermo do lugar ia virando visível, com o esboço no céu, no mermar da d’alva.” (ROSA, 2006, p.423); “E mesmo com o sol saindo bom, cacei um cobertor e uma rede.” (ROSA, 2006, p.423).
            O tempo se apresenta  numa mescla de passado, presente futuro, e somente nas lembranças de Riobaldo, devido aos volteios da narrativa. Além disso, há uma intemporalidade quando o narrador assinala o tempo de uma forma difusa,  como: “Aí foi em fevereiro ou  janeiro, no tempo de pendão do milho... (ROSA, 2006, p. 28); ...em  um dezembro chovedor  (ROSA, 2006,  p.110); ... Era mês de maio, em má lua, o frio fiava”. (ROSA, 2006, p. 115).
            Portanto, o tempo em Grande Sertão: Veredas deve ser classificado como psicológico, uma vez que, embora haja uma cronologia, o que se destaca na narrativa são as emoções e impressões do narrador e não as ações das personagens.
             O presente, a principio, se restringe a três dias. É o tempo que o narrador-personagem, Riobaldo, pede ao interlocutor, para que fique em sua fazenda para que ele possa narrar a sua vida :
eh, que se vai?Jájá? É que não. Hoje não. Amanhã, não. Não consinto. O senhor me desculpe, mas empenho de minha amizade aceite:  o senhor fica. Depois, quinta de – manhã – cedo, o senhor querendo ir, então vai, mesmo me deixa sentindo sua falta. Mas, hoje ou amanhã,  não. Visita, aqui em casa, comigo, é por três dias! (ROSA, 2006, p. 25)

            Ainda assim, não há nada que comprove ter sido esse o tempo gasto  na narração.
            No início da obra, até aproximadamente à página de número 80, da publicação em análise, o relato da personagem, Riobaldo, sobre a sua vida é confuso e desconexo. Não há uma linearidade,  há  muitos volteios de memória, o que torna difícil o entendimento. Segundo Cristiano Lima Sales:
a maneira como a “história” é contada “por Riobaldo” evidencia o tipo de relação de memória que nós, concretamente humanos, temos com o passado – está toda ela impregnada pela descontinuidade, pelo vacilo, pelas “idas e vindas” no tempo (situação oposta àquela que encontramos nos textos historiográficos, fundamentados numa cronologia temporal retrospectiva). (SALES, 2012, p. 03).

Nesse sentido, vejamos o que nos diz Sônia M. de Freitas:
a memória não tem coesão, não tem lógica, não tem simetria, é fragmentada, múltipla, confusa, (...) não tem uma compreensão profunda da passagem do tempo. Ela embaralha tudo, mistura (...), funde, costura os tempos, (FREITAS, apud SALES, 2002 p.73).
            Depreende-se que a memória seleciona os fatos, privilegiando os mais importantes, aqueles que  são mais caros ao individuo. Nesse processo, percebe-se também que a memória, diante do sofrimento, permite que o fato fuja do alcance do relembrar, na tentativa do esquecimento:
sei que estou contando errado, pelos altos. Desemendo. (...) Eu estou contando assim, porque é o meu jeito de contar. (...) A lembrança da vida da gente se guarda em trechos diversos, cada um com seu signo e sentimento, uns com os outros acho que nem não misturam. Contar seguindo alinhavado, só mesmo sendo as coisas de rasa importância. De cada vivimento que eu real tive, de alegria forte ou pesar, cada vez daquela hoje vejo que eu era como se fosse diferente pessoa. Sucedido desgovernado. Assim eu acho, assim é que eu conto. O senhor é bondoso de me ouvir. Tem horas antigas que ficaram muito mais perto da gente do que outras, de recente data. O senhor mesmo sabe. (ROSA, 2006, p.98-99).


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