Foi em fevereiro ou janeiro, no
tempo do pendão do milho.
João Guimarães Rosa
O
tempo é um elemento decisivo na narrativa. Ele pode ser cronológico quando
segue o relógio e determina que a ação e o espaço sejam exteriores, podendo ser
observado pelas personagens. Quanto ao tempo psicológico, define-se como
interior e se passa no consciente ou subconsciente de uma ou mais
personagens, sendo chamado também de metafísico.
Na obra, o autor utiliza a técnica do flasback, ou seja, a retomada de um acontecimento no passado. O
narrador tenta recompor sua vida, através das lembranças do passado
que é remexido e relatado por Riobaldo. Na esperança de encontrar
respostas para os seus questionamentos, o narrador descreve o que aconteceu
quando ainda era jagunço, chegando a liderar o bando no “sertão das Gerais”. Esse tempo encontra-se em pretérito perfeito,
demonstrando que os fatos já pertencem a um passado findo.
Na
obra, pode-se constatar a passagem do tempo, ou cronológico, em fragmentos do
texto, como: “De manhazim – moal de
pássaros em revôo, e pios e cantos – a gente toda discorria, se esparramava, atarefados,
ajudando para o derradeiro.” (ROSA, 2006, p. 46); “O dia estava clareando
completo.” (ROSA, 2006, p.120); “De verdade entardecia.” (ROSA, 2006, p. 376);
“Ao quando bem anoiteceu.” (ROSA, 2006, p. 376); “Na surgida manhã, saímos,
para a parte final da caminhada.” (ROSA, 2006, p.376); “Sombra de sombra, foi
entardecendo.” (ROSA, 2006, p.418); “Foi orvalhando. O ermo do lugar ia virando
visível, com o esboço no céu, no mermar da d’alva.” (ROSA, 2006, p.423); “E
mesmo com o sol saindo bom, cacei um cobertor e uma rede.” (ROSA, 2006, p.423).
O
tempo se apresenta numa mescla de
passado, presente futuro, e somente nas lembranças de Riobaldo, devido aos
volteios da narrativa. Além disso, há uma intemporalidade quando o narrador
assinala o tempo de uma forma difusa,
como: “Aí foi em fevereiro ou
janeiro, no tempo de pendão do milho... (ROSA, 2006, p. 28); ...em um dezembro chovedor (ROSA, 2006, p.110); ... Era mês de maio, em má lua, o frio
fiava”. (ROSA, 2006, p. 115).
Portanto,
o tempo em Grande Sertão : Veredas deve ser classificado como psicológico,
uma vez que, embora haja uma cronologia, o que se destaca na narrativa são as
emoções e impressões do narrador e não as ações das personagens.
O presente, a
principio, se restringe a três dias. É o tempo que o narrador-personagem,
Riobaldo, pede ao interlocutor, para que fique em sua fazenda para que ele
possa narrar a sua vida :
eh, que se vai?Jájá? É que não. Hoje
não. Amanhã, não. Não consinto. O senhor me desculpe, mas empenho de minha
amizade aceite: o senhor fica. Depois,
quinta de – manhã – cedo, o senhor querendo ir, então vai, mesmo me deixa
sentindo sua falta. Mas, hoje ou amanhã,
não. Visita, aqui em casa, comigo, é por três dias! (ROSA, 2006, p. 25)
Ainda
assim, não há nada que comprove ter sido esse o tempo gasto na narração.
No início da obra, até aproximadamente à página de
número 80, da publicação em análise, o relato da personagem, Riobaldo, sobre a
sua vida é confuso e desconexo. Não há uma linearidade, há
muitos volteios de memória, o que torna difícil o entendimento. Segundo Cristiano
Lima Sales:
a maneira como a “história” é
contada “por Riobaldo” evidencia o tipo de relação de memória que nós, concretamente
humanos, temos com o passado – está toda ela impregnada pela descontinuidade,
pelo vacilo, pelas “idas e vindas” no tempo (situação oposta àquela que
encontramos nos textos historiográficos, fundamentados numa cronologia temporal
retrospectiva). (SALES, 2012, p. 03).
Nesse sentido, vejamos o que nos diz Sônia M. de Freitas:
a memória não tem coesão, não tem lógica, não tem simetria,
é fragmentada, múltipla, confusa, (...) não tem uma compreensão profunda da
passagem do tempo. Ela embaralha tudo, mistura (...), funde, costura os tempos,
(FREITAS, apud SALES, 2002 p.73).
Depreende-se que a memória seleciona os fatos, privilegiando
os mais importantes, aqueles que são
mais caros ao individuo. Nesse processo, percebe-se também que a memória,
diante do sofrimento, permite que o fato fuja do alcance do relembrar, na
tentativa do esquecimento:
sei que estou contando errado, pelos
altos. Desemendo. (...) Eu estou contando assim, porque é o meu jeito de
contar. (...) A lembrança da vida da gente se guarda em trechos diversos, cada
um com seu signo e sentimento, uns com os outros acho que nem não misturam.
Contar seguindo alinhavado, só mesmo sendo as coisas de rasa importância. De
cada vivimento que eu real tive, de alegria forte ou pesar, cada vez daquela
hoje vejo que eu era como se fosse diferente pessoa. Sucedido desgovernado.
Assim eu acho, assim é que eu conto. O senhor é bondoso de me ouvir. Tem horas
antigas que ficaram muito mais perto da gente do que outras, de recente data. O
senhor mesmo sabe. (ROSA, 2006, p.98-99).
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