5.2 Linguagem sertaneja, é ou não é? Acaba sendo.
(A Linguagem em Grande
Sertão :
Veredas)
[..] desadôro de outras vozes dos
gerais.
Manuel Bandeira
João Guimarães Rosa, ao escrever Grande Sertão: Veredas, sua obra mais significativa, inova na
linguagem. Em um primoroso processo de criação ele apresenta seu romance com
uma linguagem poética de falares entrelaçados em que se percebe o regional, o
popular e o erudito com um refinamento
extremo. Sobre a criação de uma nova
linguagem Bakhtin argumenta que:
é característico que o
poeta, na sua recusa de uma dada linguagem literária, comece a sonhar com a
criação artificial de uma nova linguagem poética, antes do que recorrer aos
dialetos sociais existentes. As linguagens sociais são objetais,
caracterizadas, socialmente localizadas e limitadas; a linguagem da poesia,
criada artificialmente, será diretamente intencional, peremptória, única e
singular. (BAKHTIN, 2002, p.94).
A
característica preponderante na reinvenção e utilização da linguagem regionalista,
na obra, parece se dever ao fato de João
Guimarães Rosa ser filho de uma região próxima do sertão de Minas Gerais. Em resposta a uma comparação dele com James Joyce, ele
declara a Günter Lorenz: “Ele era um homem cerebral, não um
alquimista. Para poder ser
feiticeiro da palavra, para estudar a alquimia do sangue do coração humano, é
preciso provir do sertão.” (ROSA, 1965) Guimarães Rosa era um homem do sertão, amava o sertão.
chamou-me
“o homem do sertão”. Nada tenho em contrário, pois sou um sertanejo e acho
maravilhoso que você deduzisse isso lendo meus livros, porque significa que
você os entendeu. Se você me chama de “o homem do sertão” (e eu realmente me
considero como tal), queremos conversar sobre este homem, já estão tocados no
fundo os outros pontos. É que eu sou, antes de mais nada, este “homem do
sertão”; e isto não é apenas uma afirmação biográfica, mas também, e nisto pelo
menos eu acredito tão firmemente como você, que ele, esse “homem do sertão”,
está presente como ponto de partida mais do que qualquer outra coisa. (ROSA,
1965 apud FENSKE, 2011).
Seu amor pela terra natal, Cordisburgo, MG, “o espaço do mundo”, e pelas
coisas do sertão tornou-se público, em seu discurso, por ocasião de sua posse,
na Academia Brasileira de Letras (ABL):
Cordisburgo era pequenina terra sertaneja, trás montanhas,
no meio de Minas Gerais. Só quase lugar, mas tão de repente bonito: lá se
desencerra a Gruta de Maquiné, milmaravilha, a das Fadas (1967) E isto sim é o
importante, pois quando escrevo sempre me sinto transportado para esse mundo:
Cordisburgo (ROSA, 1967 apud FENSKE, 2011).
É possível perceber, através desse discurso e de
outras falas de Guimarães Rosa, que a
linguagem singular e poética fazia parte de sua vida, e não somente em seus escritos. Sobre o processo de criação da própria
linguagem, Guimarães Rosa declara a Lorenz:
além disso, como autor do
século XX, devo me ocupar do idioma formado sob a influência das ciências
modernas e que representa uma espécie de dialeto. E também está à minha
disposição esse magnífico idioma já quase esquecido: o antigo português dos
sábios e poetas daquela época dos escolásticos da Idade Média, tal como se
falava, por exemplo, em
Coimbra. E ainda poderia citar muitos outros, mas isso nos
levaria muito longe. Seja como for, tenho do compor tudo isto, eu diria
“compensar”, e assim nasce então meu idioma¹ que, quero deixar bem claro, está fundido com elementos que não são de minha
propriedade particular, que são acessíveis igualmente para todos os outros.
(ROSA ,1965 apud FENSKE, 2011).
Guimarães
Rosa amava a língua portuguesa. Mas tinha um jeito peculiar de trabalhar essa
língua em seus escritos. Foi questionado sobre isso em uma entrevista a Lorenz,
seu tradutor. Na resposta, comprova-se a sua erudição:
escrevo, e creio que este é o
meu aparelho de controle: o idioma português, tal como o usamos no Brasil;
entretanto, no fundo, enquanto vou escrevendo, eu traduzo, extraio de muitos
outros idiomas. Disso resultam meus livros, escritos em um idioma próprio,
meu, e pode-se deduzir daí que não me submeto à tirania da gramática e dos
dicionários dos outros. A gramática
e a chamada filologia ciência linguística, foram inventadas pelos inimigos da
poesia. (ROSA, 1965 apud FENSKE,
2011).
Com
os meios que dispunha através do conhecimento, do estudo e do próprio ofício de
diplomata que o levou a conhecer outros países, o que talvez, tenha favorecido
a sua erudição, elevou essa mesma linguagem a um papel de destaque na
Literatura Brasileira, conforme afirma Walnice Nogueira Galvão: "Guimarães
Rosa é único na literatura brasileira: foi em sua pena que nossa língua
literária alcançou seu mais alto patamar. Nunca antes, nem depois, a língua foi
desenvolvida assim em todas as suas virtualidades” (2008)².
Uma
das evidências da linguagem do autor é o
traço poético que permite logo, ao
leitor, o reconhecimento de sua
estilística, transformada em poesia. Em seus estudos sobre a estilística no
romance Bakhtin esclarece que:
não é a imagem do homem em si que é
característica, mas justamente a imagem de sua linguagem. Mas
para que esta linguagem se torne precisamente uma linguagem literária, deve se
tornar discurso das bocas que falam, unir-se à imagem do sujeito que fala.
[...] Não é possível representar adequadamente o mundo ideológico de outrem,
sem lhe dar sua própria ressonância, sem descobrir suas palavras. (BAKHTIN,
2002, p. 137).
Destarte, pode-se concluir que o autor, ao dar voz a Riobaldo, pretende
reafirmar seu amor à língua, e através da fala do jagunço, impor a própria
imagem. Esse sentimento comprova-se diante de suas declarações a Lorenz:
amo a língua, realmente a amo como se ama uma pessoa.
Isto é importante, pois sem esse amor pessoal, por assim dizer, não funciona. Aprendi
algumas línguas estrangeiras apenas para enriquecer a minha própria e porque
há demasiadas coisas intraduzíveis, pensadas em sonhos, intuitivas, cujo
verdadeiro significado só pode ser encontrado no som original.[...] quero
voltar cada dia à origem da língua, lá onde a palavra ainda está nas entranhas
da alma, para poder lhe dar luz segundo a minha imagem. (ROSA, 1965 apud FENSKE, 2011).
O escritor
define bem seu trabalho e esclarece qual resposta gostaria de receber do leitor diante de sua linguagem. Isso pode
ser constatado em uma carta dele(1964) a
Harriet de Onis, tradutora de seus livros para a língua inglesa, onde
Guimarães Rosa fala também da poesia que há no mistério que é o mundo:
meu método de trabalho implica na utilização de cada palavra como se
ela tivesse acabado de nascer, para limpá-la das impurezas da linguagem cotidiana
e reduzi-la a seu sentido original...
Mas, o mais importante, sempre, é fugirmos das formas estáticas, cediças,
inertes, estereotipadas, lugares comuns, etc. Meus livros são feitos, ou pelo
menos querem ser, à base de uma dinâmica ousada, que se for atendida o
resultado será pobre e ineficaz. Não procuro uma linguagem transparente. Ao
contrário o leitor tem que ser chocado, despertado de sua inércia mental, da
preguiça e dos hábitos. Tem de tomar consciência viva do escrito, a todo
momento. Tem quase que aprender outras maneiras de sentir e de pensar. Não o disciplinado
– mas a força elementar, selvagem. Não a
clareza - mas a poesia, a obscuridade do
mistério, que é o mundo. E é nos detalhes, aparentemente sem importância, que
esses efeitos se obrem. A maneira de dizer tem de funcionar, a mais, por si. O
ritmo, a rima, as aliterações ou assonâncias, a música subjacente ao sentido –
para maior expressividade. (ROSA apud
Vaz, 2012, p. 04).
Diante do trabalho de lapidação da língua efetuado por Guimarães Rosa,
evidencia-se o cuidado que o autor emprega na estruturação de sua obra Grande Sertão: Veredas. Para o escritor
um “léxico apenas não era suficiente”,
(ROSA, 1965) por isso ele se aprofunda e cria uma língua capaz de levar o leitor a reflexões, além do prosaico.
Para ele “a linguagem e a vida era uma coisa só e a linguagem deve evoluir constantemente”. (ROSA, 1965). Em seu discurso sobre o romance, Bakhtin também defende essa ideia
quando afirma:
a língua do poeta é sua própria linguagem, ele está nela e é
dela inseparável. Ele utiliza cada forma, cada palavra, cada expressão, no seu
sentido direto (por assim dizer), isto é, exatamente com a expressão pura e
imediata de seu pensar. Quaisquer que tenham sido as “tormentas verbais” que o
poeta tenha sofrido no processo de criação, na obra criada a linguagem passou a
ser um órgão maleável, adequado até o fim ao projeto do autor. (BAKHTIN, 2002,
p. 94).
Guimarães Rosa, de uma forma original, revestiu a própria língua,
realizando o discurso com uma sintaxe renovada, criando sentenças em ordem
invertida e algumas sem os conectivos exigidos pela gramática. Utilizou de
recursos como hipérbatos, elipses e circunlóquios. No léxico, também foi ousado, ao inventar
vocábulos e misturar os falares regionais, capazes de expressar muito além do
verdadeiro significado da palavra. Sobre isso, tratar-se-á no capítulo
intitulado “Recursos de Linguagem” do presente trabalho.
Segundo Nilce Sant’ana Martins
(2001), citada por Marília Gazola Pessoa Barros (2001) mais de 30% das 8000
palavras, selecionadas pela autora, de diferentes livros de Guimarães Rosa, não
foram encontradas em diversos dicionários
de Língua Portuguesa, que serviram de base para a
pesquisa publicada em seu livro O Léxico
de Guimarães Rosa.
¹Nesse momento, Guimarães Rosa faz
uma menção à sua própria linguagem como um novo idioma, o que nos reporta ao
termo “idioleto” citado nos
capítulos intitulados “A Linguagem”
e “O
Autor” do presente trabalho.
² Walnice Nogueira Galvão, professora
de literatura da USP, autora de "Folha Explica - Guimarães Rosa" e
estudiosa da obra de Guimarães Rosa.
Lécia Freitas
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