domingo, 29 de junho de 2014

"A POÉTICA ROSEANA" Capítulo 5 subcapítulo 4

 5.4 A Poética em Grande Sertão: Veredas



Só nos olhos das pessoas é que eu procurava
o macio interno delas; só no onde os olhos.
João Guimarães Rosa
           
            Na obra Grande Sertão: Veredas, o autor utiliza diversos elementos que se convertem em linguagem poética devido à sua criatividade e senso estético. Ele ultrapassa a própria língua na sua função comunicativa e faz dela a matéria prima para a sua mais perfeita obra de arte. Um dos recursos utilizados pelo autor, e que confere um atributo poético à sua obra, são as descrições  das belezas naturais da região. Além das imagens, a linguagem utilizada remete aos sons produzidos pelos elementos da natureza, o que os torna mais expressivos e belos. 
            Riobaldo, o narrador, sempre associa a figura de Diadorim e o intenso sentimento que tem por ele, às coisas da natureza.  Foi Diadorim que o “ensinou a gostar dessas coisas todas” (ROSA, 2006, p. 26). Guimarães Rosa entrelaça as emoções dos protagonistas com essas belezas  por todo sempre,  evidenciando o amor dos dois: 
a garôa rebrilhante da dos-Confins, madrugada quando o céu embranquece – neblim que chamam de xererém. Quem me ensinou a apreciar essas as belezas sem dono foi Diadorim... A da Raizama, onde até os pássaros calculam  o giro da lua – se diz – e cangussú monstra pisa em volta.(ROSA, 2006, p. 26). Ia dechover mais em mais. Tardinha que enche as árvores de cigarras – então, não chove. Assovios que fechavam o dia: o papa-banana, o azulejo, a garricha-do-brejo, o suirirí, o sabiá-ponga, o grunhatá-do-coqueiro... Eu estava todo o tempo quase com Diadorim (ROSA, 2006, p. 28). Saí, vim, destes meus Gerais: voltei com Diadorim. Não voltei? Travessia... Diadorim, os rios verdes. A lua, o luar: vejo esses vaqueiros que viajam a boiada mediante o madrugar, com lua no céu, dia após dia. Pergunto coisas ao buriti; e o que ele responde é: a coragem é minha. Buriti quer todo azul, e não se aparta de sua água – carece de espelho. Mestre não é quem sempre ensina, mas quem de repente aprende. (ROSA, 2006, p.309).
            A linguagem literária distancia-se da linguagem comum para obter efeitos expressivos mais intensos e surpreendentes. Segundo Jean Cohen “O poeta é poeta não pelo que pensou ou sentiu, mas pelo que disse. Ele é criador não de ideias, mas de palavras. Todo seu gênio reside na invenção verbal” (1966, p. 38). As figuras de linguagem são recursos utilizados pelos autores para conseguir esses efeitos expressivos. As metáforas, em sentido estrito, é a substituição do significado de uma palavra por outra, a partir de uma semelhança. E podem ser identificadas nesses trechos de Grande  Sertão: Veredas:
numa baixada toda avistada, felizinha de aprazível, com uma lagoa muito correta, rodeada de buritizal dos mais altos: buriti – verde que afina e reveste, belimbeleza... numa alegria, feito nuvem de abelhas em flor de araçá. (ROSA, 2006, p. 45). Buriti, minha palmeira,  lá na vereda de lá:  casinha da banda esquerda, olhos de onda do mar... (ROSA, 2006, p. 52). O Amor? Pássaro que põe ovos de ferro.../ Diadorim era aquela estreita pessoa... (ROSA, 2006, p. 61). Em Diadorim, penso também – mas Diadorim é a minha neblina (ROSA, 2006, p. 24). Abracei Diadorim com as asas de todos os pássaros (ROSA, 2006, p. 41). Diadorim era mulher como o sol não acende a água do rio Urucúia, como eu solucei o meu desespero. (ROSA, 2006, p.599).
            Para Cohen (1966, p.94), a linguagem poética revela, graças à agramaticalidade, um desvio¹¹ linguístico  ao  tomar-se a  palavra  em  seu sentido literal. Para reduzir-se esse desvio basta mudar o sentido de uma dessas palavras. Essa mudança se faz necessária uma vez que o sentido literal é impertinente, ao passo que  o segundo sentido, promovido pela metáfora,  lhe devolve a pertinência. A impertinência é uma infração ao código da fala, situa-se no plano sintagmático; a metáfora é uma infração ao código da língua, situa-se no plano paradigmático. A supremacia da fala sobre a língua comprova-se, uma vez que esta aceita   transformar-se para dar um sentido àquela. Esse autor afirma que “a estratégia poética tem, por único objetivo a mudança de sentido e que o poeta atua sobre a mensagem para modificar a língua” (COHEN, 1966, p. 94-95)
            Outras figuras de linguagem, como aliteração e assonância presentes no texto, imprimem a musicalidade que é um dos atributos necessários à linguagem  poética. Impressiona a capacidade criativa de Guimarães Rosa no trato com as palavras, no sentido de produzir a sonoridade. Quando ele imita a voz dos animais, principalmente a dos passarinhos e dos grilos, se se apurar o ouvido é possível perceber, tamanha a força da imagem, por meio da palavra, que ele propõe.  Outros exemplos comprovam a exacerbação:
demorou dentro dum momento / me disse nada menos nada, de deu em demo. / Floriano, foi,  foi, foi... / Zé Bebelo vinha vindo. Vinham por nós.../ vara verde  ver... / dele havia de vir o pior... rente repente...?  coração bruto batente debaixo de tudo... / deu de dar diante , um  desvôo... / a vida é uma vago variado... / bobeia disso, a basba do basbaque... / ouvi um uivo doido de Diadorim... / mas os passávamos feito flecha, feito faca, feito fogo... / As arvorezinhas ruim-ínhas de minhas... / o cavalão lão lão, pôs pernas para adiante... / Desmenti o ódio de Diadorim forjava as formas do falso... / Diadorim tomou conta de mim.  /  ...feito flecha, feito faca, feito fogo (ROSA,  2006).

            Veja-se o que declara o crítico Eduardo Faria Coutinho, citado por Fenske, a respeito dessa técnica do autor, Guimarães Rosa:
a aliteração é um dos recursos poéticos mais importantes empregados por Guimarães Rosa. [...] Ela se estende desde a simples reduplicação de um fonema ou uma sílaba até a repetição de vocábulos ou expressões inteiros (qual e qual) e serve geralmente ao propósito de reforçar o conteúdo expressional através da criação de uma atmosfera sugestiva. (COUTINHO, apud FENSKE 2011).

            Em seus estudos Cohen nos diz que a aliteração consegue um efeito de homofonia, como a rima, a partir das contingências da língua. Segundo ele, a aliteração realiza de uma palavra para outra o que a rima efetua de um verso para o outro. A função da homofonia só aparece se relacionarmos o verso com a prosa. Segundo esse autor “no discurso prosaico, toda a rima , toda aliteração é inoportuna e o escritor esforça-se por evitá-las enquanto o verso procura-as e até faz da rima uma regra constitutiva.” (COHEN, 1966, p. 73). Seria impossível enumerar todas as rimas existentes na obra, no entanto, decidiu-se por destacar esses trechos em que acontece a rima com o “im”
só de mim era que Diadorim às vezes parecia ter um espevito de desconfiança; de mim, que era o amigo! Mas, essa ocasião, ele estava ali, mais vindo, a meia-mão de mim. (ROSA, 2006, p. 29) Diadorim queria o fim. (ROSA, 2006, p.30). Dizendo, Diadorim se arredou de mim (ROSA, 2006, p. 469). Diadorim me olhava. Diadorim esperou, sempre com serenidade. O amor dele por mim era de todo quilate: ele não tartameava mais, de ciúme nem de medo. Disse assim. (ROSA, 2006, p. 482).

            Sobre o ritmo, observa-se  um movimento, no caso espiralado,  como os próprios volteios da narrativa,  na linguagem labiríntica, e no vento que vai e volta, o próprio “redemunho” do vento:
do vento. Do vento que vinha, rodopiando. Redemoinho: o senhor sabe – a briga dos ventos. O quando um esbarra com outro, e se enrolam, o dôido espetáculo. A poeira subia, a dar que dava escuro, no alto, o ponto às voltas,folharada, e ramarêdo quebrado, no estalar de pios assovios, se torcendo turvo,esgarabulhando. Senti meu cavalo como meu corpo. Aquilo passou, embora, oró-ró. A gente dava graças a Deus.  (ROSA, 2006, p. 187). Diadorim foi nele... Negaceou, com uma quebra de corpo, gambetou... E eles sanharam e baralharam, terçaram. De supetão... e só...E eu estando vendo! Trecheio, aquilo rodou, encarniçados, roldão de tal dobravam para fora e para dentro, com braços e pernas rodejando, como quem corre, nas entortações...O diabo na rua, no meio do redemunho... (ROSA, 2006, p. 595).
            Entre as onomatopeias uma se destaca pelo caráter poético e por sempre vir acompanhada de uma imagem que  remete-se a lugares calmos e bonitos: o buritizal com  folha que “lequelequêia” (ROSA, 2006, p. 47) ao vento. Outra figura, inusitada, é “o barulho dos tiros que desfechavam com metralhadora: arrejárrajava” (ROSA, 2006, p.356).
            O estranhamento do leitor ante o inusitado dos termos pode ser amenizado diante da argumentação de Jean Cohen, em seu livro Estrutura da Linguagem Poética.  Através da sua teoria pode-se ter uma visão do processo de construção  da linguagem poética de Guimarães Rosa  em Grande Sertão: Veredas:
o poema não é a expressão fiel de um universo anormal, mas a expressão anormal de um universo comum. A poesia não é a “bela linguagem”, mas uma linguagem que o poeta teve de inventar para dizer aquilo que não teria dito de outra forma. (COHEN, 1974, p. 97-132).
            Para Guimarães Rosa, citado por Fenske, “o idioma é a única porta para o infinito mas, infelizmente está oculto sob montanhas de cinzas."(2011). Ele consegue dizer  o que já existe de uma forma singular:
como é que eu posso com este mundo? A vida é ingrata no macio de si do fel do desespero. Ao que, este mundo é muito misturado... Sertão é isto: o senhor empurra para trás, mas de repente ele volta a rodear o senhor dos lados. Sertão é quando menos se espera; digo. (ROSA, 2006, p. 202-286).

            Outra figura de linguagem muito utilizada pelo autor é o hipérbato onde Guimarães Rosa  “quebra” a sequência lógica das frases, no entanto, percebe-se a dramaticidade em fragmentos como esse que descreve a morte de Diadorim: “Mesmo  como jazendo assim, nesse pó de palidez, feito a coisa e máscara, sem gota nenhuma.  Os  olhos  dele  ficados  para  a gente  ver” (ROSA, 2006, p. 598).  Ou em outro exemplo: “caminhamos prazo dentro do riacho, depois escolhemos para pisar pedras, de nosso pisado com ramos desmanchamos, e o mais do caminho que se seguiu por muitos rodeios. De tudo não falo.” (ROSA, 2006, p. 216).
            Em seus estudos sobre a estrutura poética, Cohen afirma que “as palavras são simples substitutos das coisas, existem para transmitir uma informação sobre as coisas que as próprias coisas nos forneceriam mais adequadamente se pudéssemos percebê-las”. (COHEN, 1974, 31-32). Essa afirmativa reporta-se  à capacidade criativa de Guimarães Rosa: “De qualquer pano de mato, de de-entre quase cada encostar de duas folhas, saíam em giro as todas cores de borboletas.” (ROSA, 2006,   p.28).
            Além disso, essa afirmativa de Cohen tem uma estreita correlação com as palavras de Guimarães Rosa ao jornalista Lorenz,  citadas por Fenske (2011), “e assim nasce então meu idioma que, quero deixar bem claro, está fundido com elementos que não são de minha propriedade particular, que são acessíveis igualmente para todos os outros” (ROSA, 1965) e que é demonstrada em fragmentos retirados da obra Grande Sertão: Veredas:
quero bem a esses maios, o sol bom, o frio de saúde, as flores no campo, os finos ventos  maiozinhos. A frente da fazenda, num tombado, respeitava para o espigão, para o céu. Entre os currais e o céu, tinha só um gramado limpo e uma restinga de cerrado, de onde descem borboletas brancas, que passam entre as  réguas da cerca...  Ali, a gente não vê o virar das horas. E a fôgo-apagou sempre cantava, sempre. Para mim, até hoje, o canto da fôgo-apagou tem um cheiro de  folhas de assa-peixe.[...] Coração cresce de todo lado. Coração vige feito riacho colominhando por entre serras e varjas, matas e campinas. Coração mistura amores. Tudo cabe (ROSA, 2006 p. 189-188).

            Embora haja desvios linguísticos  na obra Grande Sertão: Veredas,  o que favorece a linguagem poética, Guimarães Rosa como estudioso e amante da língua, respeita o código gramatical. Assim não fosse, não seria possível o entendimento da mensagem. Para Cohen, “a gramática é o pilar que sustenta a significação. A inversão , no entanto, é um traço especifico da poesia que constitui um desvio sistemático da linguagem habitual.” (COHEN, 1966, p. 150)  Louis Aragon, citado por Cohen, em seus estudos, concorda com essa asseveração e  afirma   que “só há poesia quando há meditação sobre a linguagem  e reinvenção desta linguagem a cada passo.” (ARAGON, 1942, p.14). Em Grande Sertão: Veredas faz-se necessário meditar sobre o dito:
que era: que a gente carece de fingir às vezes que raiva tem, mas raiva mesma nunca se deve de tolerar de ter. Porque, quando se curte raiva de alguém, é a mesma coisa que se autorizar que essa pessoa passe durante o tempo governando a idéia e o sentir da gente. (ROSA, 2006, p. 237).
          Finalmente, Cohen argumenta, em seu livro Estrutura da Linguagem Poética (1974),  que “consideramos a linguagem poética como um fato de estilo tomado no seu sentido geral”.  O autor diz ainda que o poeta não fala como todo mundo . Sua linguagem é anormal, e tal anormalidade confere-lhe um estilo:
a frase poética confere aos termos uma função que o sentido é incapaz de exercer. [...] o código da linguagem normal apóia-se na experiência externa, enquanto o código da linguagem poética na experiência interna. (COHEN, 1974, p. 170).
            Buscou-se em Grande Sertão: Veredas, entre tantos dizeres significativos, algo assim como:
a vida inventa! A gente principia as coisas, no não saber porque, e desde aí perde o poder de continuação – porque a vida é mutirão de todos, por todos remexida e temperada. [...] Mas, pensar na pessoa que se ama, é como querer ficar à beira d'água, esperando que o riacho, alguma hora, pousoso, esbarre de correr. (ROSA, 2006, pp. 461-361).       

            Na obra em estudo, os elementos da narrativa se apresentam de uma maneira que se afasta da forma tradicional. Sendo assim, considera-se relevante seu estudo para a compreensão da estruturação da obra e também por entender-se que esses elementos contribuem para o aspecto poético que se evidencia em Grande Sertão: Veredas.

 





¹¹ Cohen (1966, p.161) ainda considera que “[...] a diferença entre prosa e poesia é de natureza linguística, vale dizer, formal. Não se acha nem na substância ideológica, mas no tipo particular de relações que o poema institui entre o significante e o significado

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