domingo, 15 de junho de 2014

" A POÉTICA ROSEANA" Capítulo 5 subcapítulo 1

5.1 A Linguagem

            Para embasamento da proposta de análise do processo de criação da linguagem roseana, retomar-se-á o estudo da teoria bakhtiniana, uma vez que seu autor  afirma que “entre as linguagens são possíveis relações dialógicas que podem ser percebidas   como  pontos   de   vistas   sobre  o  mundo” (BAKHTIN, 2002, p.99). Tal afirmação leva a reconhecer que um autor, ao se orientar por determinada  linguagem  na  escrita  de  uma  obra, mostra sua visão da realidade ao mesmo tempo em que sugere uma mudança. Isso porque, segundo o teórico:
toda manifestação verbal socialmente importante tem o poder, às vezes por longo tempo e um amplo círculo, de contagiar com suas intenções  os elementos da linguagem que estão integrados na sua orientação semântica e expressiva, impondo-lhes nuanças de sentido precisas e tons de valores definidos. ( BAKHTIN, 2002, p. 97).
            Pode-se  concluir, então, que no cotidiano, em que se convive com os mais diversos tipos de linguagem,  é inevitável a influência dos discursos ideológicos presente neles. Segundo os Parâmetros Curriculares Nacionais (PCNs),
a linguagem é uma forma de ação interindividual orientada por uma finalidade específica, um processo de interlocução que se realiza nas práticas sociais existentes nos diferentes grupos de uma sociedade, nos distintos momentos de sua história.  [...] a linguagem verbal possibilita ao homem representar a realidade física e social [...] (BRASIL, 1997, p.22).

            Diante disso, pode-se  afirmar que o homem  está intrinsecamente ligado à linguagem. Ao fazer parte da vida do homem  e de todos os seus atos, ela  torna-se um instrumento que influencia e modifica a realidade. Sobre isso veja-se o que  declara Louis Trolle Hjelmslev numa das mais belas páginas sobre a Linguagem. Decidiu-se por apresentá-la na íntegra por resumir a conceituação em uma perspectiva insólita:
a linguagem (...) é uma inesgotável riqueza de múltiplos valores. A linguagem é inseparável do homem e segue-o em todos os seus atos. A linguagem é o instrumento graças ao qual o homem modela seu pensamento, seus sentimentos, suas emoções, seus esforços, sua vontade e seus atos, o instrumento graças ao qual ele influencia e é influenciado, a base última e mais profunda da sociedade humana. Mas é também o recurso último e indispensável do homem, seu refúgio nas horas solitárias em que o espírito luta com a existência, e quando o conflito se resolve no monólogo do poeta e na meditação do pensador. Antes mesmo do primeiro despertar de nossa consciência, as palavras já ressoavam à nossa volta, prontas para envolver os primeiros germes frágeis de nosso pensamento e a nos acompanhar inseparavelmente através da vida, desde as mais humildes ocupações da vida cotidiana até os momentos mais sublimes e mais íntimos dos quais a vida de todos os dias retira, graças às lembranças encarnadas pela linguagem, força e calor. A linguagem não é um simples acompanhante, mas sim um fio profundamente tecido na trama do pensamento: para o indivíduo, ela é tesouro da memória e a consciência vigilante transmitida de pai para filho. Para o bem e para o mal, a fala é a marca da personalidade, da terra natal e da nação, o título de nobreza da humanidade. O desenvolvimento da linguagem está tão inextricavelmente ligado ao da personalidade de cada indivíduo, da terra natal, da nação, da humanidade, da própria vida, que é possível indagar-se se ela não passa de um simples reflexo ou se ela não é tudo isso: a própria fonte de desenvolvimento dessas coisas. É por isso que a linguagem cativou o homem enquanto objeto de deslumbramento e de descrição na poesia e na ciência  ( HJELMSLEV,1975 pp.1-2).

Segundo Marilena Chauí (2000), é através da linguagem, no momento em que se fala, que se constrói significados, visto que,  quando  se fala a alguém, também se ouve. Essa ação possibilita compreender os próprios pensamentos e os pensamentos de outrem sobre o mundo e a realidade. A fala do outro traz significados que já se conhece,  assim como outros que passa-se  a conhecer através desse diálogo. As palavras têm sentido e criam sentidoAinda de acordo com a filósofa:
a linguagem refere-se ao mundo através dos significados e, por isso, podemos nos relacionar com a realidade através da palavra; exprime e descobre significados e, por isso, podemos nos comunicar e nos relacionar com os outros; tem o poder de suscitar significações, de evocar recordações, de imaginar o novo ou o inexistente. (CHAUÍ, 2000, p.187).
Como prática social, a linguagem é munida de efeitos de sentido em função do espaço social e dos sujeitos que o constituem. Esses sentidos são criados pelo homem para significar o que ele deseja naquele momento. Logo, os efeitos de sentidos têm um objetivo, por isso a linguagem se constitui um elemento de congregação entre os sujeitos. Isso quer dizer que a cada enunciado e, de acordo com a situação discursiva, a palavra, como unidade da linguagem, adquire outros  sentidos,  criando  uma nova interpretação  do mundo e da  realidade.
            Sobre os enunciados nos discursos humanos,  Bakhtin postula que uma perspectiva  sociolinguística   concreta  e  abstratamente única não se submete uma definição linguística escrita mas traz em si o potencial de um dialeto em formação:
entendemos como “linguagem social” não o conjunto de signos linguísticos que determinam a valorização dialetológica e a singularização da linguagem, mas precisamente uma entidade concreta e viva dos signos, sua singularização social, a qual pode se realizar também nos quadros de uma linguagem linguisticamente única, determinados pelas transformações semânticas e pelas seleções lexicológicas (BAKHTIN, 2002, p. 154).

            Pode-se perceber, então, que Guimarães Rosa, ao criar transformações semânticas e fazer seleções lexicais em sua obra, intencionalmente ou não, propõe um idioleto¹ ainda que embrionário.  A nova perspectiva linguística  do  autor,  em que ele singulariza e privilegia a fala regionalista torna-se a sua marca, sendo motivo de estudos desde que foi “inventada”. Como um estudioso da língua, certamente sabia da responsabilidade de tal ato.  Isso confirma a afirmativa de Bakhtin de que:
O enunciado existente, surgido de maneira significativa num determinado momento social e histórico, não pode deixar de tocar os milhares de fios dialógicos existentes, tecidos pela consciência ideológica em torno de um dado objeto de enunciação, não pode deixar de ser participante ativo do diálogo social (BAKHTIN, 2002, p.87).
            .No contexto em que a obra Grande Sertão: Veredas foi criada, pode-se intuir a preocupação do autor em renovar a língua, valorizando a cultura sertaneja. Essa atitude do  escritor  coloca-o  na  contramão  da  Literatura  Brasileira²  que,  naquele momento, defendia a modernização do país com um  discurso predominantemente desenvolvimentista.
            Enquanto outros autores, notadamente, abordam em seus textos regionalistas os  problemas  brasileiros  sociogeográficos,  Guimarães  Rosa  tem uma relação de simpatia e identificação com as personagens. Ele usa a  palavra para revelar as peculiaridades do mundo sertanejo do qual faz parte, de uma forma  que   ninguém o fizera até então, com uma linguagem única. A sua consciência linguística permite-lhe a criação de uma linguagem que, sendo  mescla de  outras, heteróclita,  configura-se em uma linguagem  refinada e potencialmente expressiva. Sobre essa consciência  esclarece o linguista:
sempre e por toda parte a consciência linguística literariamente ativa (em todas as épocas da literatura que nos são historicamente acessíveis) encontra-se com “linguagens” e não com uma linguagem. Ela se coloca diante da necessidade da escolha de uma linguagem. Em cada uma das suas manifestações lítero-verbais, esta consciência se orienta ativamente para o pluridiscurso, ocupa uma posição e elege uma "linguagem". (BAKHTIN, 2002, p. 101).
            Guimarães Rosa, em sua obra, elege a linguagem regionalista e popular. Apoiado na sua erudição, no conhecimento que tem sobre a língua, ele a transforma
em  linguagem poética,  sendo essa uma  das  características do   texto  literário. O  arranjo  com as palavras e a plurissignificação configura ao texto roseano a expressão literária, porquanto, para que um texto seja considerado literário  é necessária uma elaboração especial das palavras. Entende-se, então, que nem todo texto pode ser considerado literário mas:
qualquer assunto pode inspirar uma obra de arte, desde que o autor consiga transmitir a emoção estética. As palavras aí estão, à disposição de qualquer pessoa. Se houvesse palavras literárias em si mesmas, para escrever um poema bastaria comprar um dicionário de palavras poéticas e...pronto. Não existe uma hierarquia de palavras, Todas elas podem se tornar literárias; o que as transforma é o arranjo, a relação nova entre elas. (CAMPEDELLI, SOUZA,  2002, p.11).
            Dessa transformação em que o autor se apropria das palavras e dá a elas o significado pretendido, de acordo com o próprio interesse, criando uma estratificação interna na linguagem, se origina a estilística do autor. No que concerne à estilização  Bakhtin  esclarece que:
na estilização, a consciência linguística do estilista trabalha, exclusivamente com o material da linguagem a ser estilizada; ela esclarece e introduz nele seus interesses “de língua de outrem”, porém não o seu material alheio contemporâneo. A estilização como tal deve ser mantida até o fim.  [...] A justaposição dialógica, no romance, das linguagens puras ao lado as hibridações, é um recurso potente para se criar modelos de linguagens (BAKHTIN, 2002, pp. 160-161).
              Finalmente, segundo Domício Proença Filho, (1987) se a língua envolve uma dimensão social e se caracteriza por ser sistemática, a utilização individual feita pelos falantes, ou seja, a fala ou discurso é um conglomerado de fato assistemáticos e, em relação a ela, citando Barthes, “um ato individual de seleção e atualização” (PROENÇA FILHO, 1987, p. 23). Nesse sentido, de acordo com Proença Filho:
cada pessoa tem o seu ideal lingüístico. A língua coloca à disposição de cada um múltiplo repertório de possibilidades. Ao assumir o discurso, o indivíduo busca escolher os meios de expressão que melhor configurem suas ideias, pensamentos e desejos. Essa escolha é que caracteriza o estilo (PROENÇA FILHO, 1987, p. 23-24).
              Embora haja uma individualidade nos textos de cada autor, eles se valem  da língua portuguesa e conforme esse escritor, a partir dela, “criam-se realidades num uso especial da linguagem, a arte literária. ”(PROENÇA FILHO, 1987, p.24)
            Nesse sentido, pode-se concluir que João Guimarães Rosa, ao se apropriar da língua e atribuir à linguagem uma prenhez carregada de significação ele transforma a prosa em poesia.
            Além disso, podem ser observadas, na obra Grande Sertão: Veredas, seguindo as normas exigidas pelo sistema linguístico para a estruturação da linguagem poética, os elementos que a compõe, tradicionalmente, como o ritmo, a sonoridade e as figuras de linguagem. Destaca-se a força imagética, utilizada pelo autor, partindo das descrições das belezas naturais da região para a estética da obra.
            Para a análise desses elementos e a sua contribuição na estrutura da obra Grande Sertão: Veredas será  privilegiado o estudo de Maria Betânia Diniz Ferreira, em sua publicação para a revista literária da Universidade Federal de Minas Geras. Essa autora  realizou um trabalho aprofundado e detalhado sobre essa obra de João Guimarães Rosa que será apresentado no capítulo Recursos de Linguagem” da presente pesquisa.





¹ O idioleto é “a linguagem enquanto falada por um só indivíduo” - A. Marinet : A finctional view of language, Osford, Claredon Press, a962, 0. 105. Citado por Roland Barthes em Elementos da Semiologia,  13 ed , São Paulo: Cultrix, 2000, p.23. Entretanto, sobre esse ponto, veja-se o que  diz o crítico Cavalcanti Proença M. , em  “Augusto dos Anjos e Outros Ensaios”, 2. ed. Rio de Janeiro, Grifo; Brasília, Instituto Nacional do Livro, 1973.p. 240. - “Terá Guimarães Rosa inventado uma língua? Um dialeto? Pergunta ociosa, se feita com intenção cientifica, uma vez que língua e dialeto são conceitos delimitados em definições convencionadas internacionalmente. Ainda que se considerem língua e dialeto com o máximo de amplitude semântica,ainda assim não houve criação. O que ocorreu foi ampla utilização de virtualidades da nossa língua,tendo a analogia, principalmente, fornecido os recursos de que ele se serviu para construir uma fala capaz de refletir a enorme carga afetiva do seu discurso. Daí, embora reconhecendo que, pela abundante contribuição individual, essa fala encontra dificuldades para se incorporar à língua, não cabe falar em criação, mas em esforço consciente.

² Esse ponto será abordado no capítulo “Contexto Histórico” do presente trabalho.

                                                                                                                                               Lécia Freitas


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