5.1 A Linguagem
Para embasamento da
proposta de análise do processo de criação da linguagem roseana, retomar-se-á o
estudo da teoria bakhtiniana, uma vez que seu autor afirma que “entre as linguagens são possíveis
relações dialógicas que podem ser percebidas como pontos de vistas sobre o mundo”
(BAKHTIN, 2002, p.99). Tal afirmação leva
a reconhecer que um autor, ao se orientar por determinada linguagem na
escrita de uma
obra, mostra sua visão da realidade ao mesmo tempo em que sugere uma
mudança. Isso porque, segundo o teórico:
toda manifestação verbal socialmente importante tem o
poder, às vezes por longo tempo e um amplo círculo, de contagiar com suas
intenções os elementos da linguagem que
estão integrados na sua orientação semântica e expressiva, impondo-lhes nuanças
de sentido precisas e tons de valores definidos. ( BAKHTIN, 2002, p. 97).
Pode-se concluir, então, que no cotidiano, em que se
convive com os mais diversos tipos de linguagem, é inevitável a influência dos discursos
ideológicos presente neles. Segundo os Parâmetros Curriculares Nacionais
(PCNs),
a linguagem é uma forma de ação
interindividual orientada por uma finalidade específica, um processo de
interlocução que se realiza nas práticas sociais existentes nos diferentes
grupos de uma sociedade, nos distintos momentos de sua história. [...] a linguagem verbal possibilita ao homem
representar a realidade física e social [...] (BRASIL, 1997, p.22).
Diante disso, pode-se afirmar que
o homem está intrinsecamente ligado à
linguagem. Ao fazer parte da vida do homem
e de todos os seus atos, ela
torna-se um instrumento que influencia e modifica a realidade. Sobre
isso veja-se o que declara Louis Trolle Hjelmslev numa das mais belas páginas sobre a Linguagem. Decidiu-se
por apresentá-la na íntegra por resumir a conceituação em uma perspectiva
insólita:
a linguagem (...) é uma inesgotável
riqueza de múltiplos valores. A linguagem é inseparável do homem e segue-o em
todos os seus atos. A linguagem é o instrumento graças ao qual o homem modela
seu pensamento, seus sentimentos, suas emoções, seus esforços, sua vontade e
seus atos, o instrumento graças ao qual ele influencia e é influenciado, a base
última e mais profunda da sociedade humana. Mas é também o recurso último e indispensável
do homem, seu refúgio nas horas solitárias em que o espírito luta com a
existência, e quando o conflito se resolve no monólogo do poeta e na meditação
do pensador. Antes mesmo do primeiro despertar de nossa consciência, as
palavras já ressoavam à nossa volta, prontas para envolver os primeiros germes
frágeis de nosso pensamento e a nos acompanhar inseparavelmente através da
vida, desde as mais humildes ocupações da vida cotidiana até os momentos mais
sublimes e mais íntimos dos quais a vida de todos os dias retira, graças às
lembranças encarnadas pela linguagem, força e calor. A linguagem não é um
simples acompanhante, mas sim um fio profundamente tecido na trama do
pensamento: para o indivíduo, ela é tesouro da memória e a consciência
vigilante transmitida de pai para filho. Para o bem e para o mal, a fala é a
marca da personalidade, da terra natal e da nação, o título de nobreza da
humanidade. O desenvolvimento da linguagem está tão inextricavelmente ligado ao
da personalidade de cada indivíduo, da terra natal, da nação, da humanidade, da
própria vida, que é possível indagar-se se ela não passa de um simples reflexo
ou se ela não é tudo isso: a própria fonte de desenvolvimento dessas coisas. É
por isso que a linguagem cativou o homem enquanto objeto de deslumbramento e de
descrição na poesia e na ciência (
HJELMSLEV,1975 pp.1-2).
Segundo Marilena Chauí (2000), é através da linguagem,
no momento em que se fala, que se constrói significados, visto que, quando se fala a alguém, também se ouve. Essa ação
possibilita compreender os próprios pensamentos e os pensamentos de outrem sobre
o mundo e a realidade. A fala do outro traz significados que já se
conhece, assim como outros que passa-se a conhecer através desse diálogo. As palavras
têm sentido e criam sentido. Ainda de acordo com a filósofa:
a linguagem refere-se ao mundo através dos
significados e, por isso, podemos nos relacionar com a realidade através da
palavra; exprime e descobre significados e, por isso, podemos nos comunicar e
nos relacionar com os outros; tem o poder de suscitar significações, de evocar
recordações, de imaginar o novo ou o inexistente. (CHAUÍ, 2000, p.187).
Como prática social, a linguagem é munida de efeitos de sentido em função do espaço
social e dos sujeitos que o constituem. Esses
sentidos são criados pelo homem para significar o que ele deseja naquele
momento. Logo, os efeitos de sentidos têm um objetivo, por isso a linguagem se constitui
um elemento de congregação entre os sujeitos. Isso quer dizer que a cada
enunciado e, de acordo com a situação discursiva, a palavra, como unidade da
linguagem, adquire outros sentidos, criando
uma nova interpretação do mundo e
da realidade.
Sobre os enunciados nos discursos humanos, Bakhtin postula que uma perspectiva sociolinguística concreta
e abstratamente única não se
submete uma definição linguística escrita mas traz em si o potencial de um
dialeto em formação:
entendemos como “linguagem
social” não o conjunto de signos linguísticos que determinam a valorização
dialetológica e a singularização da linguagem, mas precisamente uma entidade
concreta e viva dos signos, sua singularização social, a qual pode se realizar
também nos quadros de uma linguagem linguisticamente única, determinados pelas
transformações semânticas e pelas seleções lexicológicas (BAKHTIN, 2002, p.
154).
Pode-se
perceber, então, que Guimarães Rosa, ao criar transformações semânticas e fazer
seleções lexicais em sua obra, intencionalmente ou não, propõe um idioleto¹ ainda que embrionário. A nova perspectiva linguística do autor,
em que ele singulariza e privilegia a
fala regionalista torna-se a sua marca, sendo motivo de estudos desde que foi
“inventada”. Como um estudioso da língua, certamente sabia da responsabilidade
de tal ato. Isso confirma a afirmativa
de Bakhtin de que:
O enunciado
existente, surgido de maneira significativa num determinado momento social e
histórico, não pode deixar de tocar os milhares de fios dialógicos existentes,
tecidos pela consciência ideológica em torno de um dado objeto de enunciação,
não pode deixar de ser participante ativo do diálogo social (BAKHTIN, 2002,
p.87).
.No contexto em que a obra Grande
Sertão: Veredas foi criada, pode-se intuir a preocupação do autor em
renovar a língua, valorizando a cultura sertaneja. Essa atitude do escritor
coloca-o na contramão
da Literatura Brasileira² que,
naquele momento, defendia a modernização do país com um discurso predominantemente
desenvolvimentista.
Enquanto
outros autores, notadamente, abordam em seus textos regionalistas os problemas
brasileiros sociogeográficos, Guimarães
Rosa tem uma relação de simpatia
e identificação com as personagens. Ele usa a
palavra para revelar as peculiaridades do mundo sertanejo do qual faz
parte, de uma forma que ninguém o fizera até então, com uma
linguagem única. A sua consciência linguística permite-lhe a criação de uma
linguagem que, sendo mescla de outras, heteróclita, configura-se em uma linguagem refinada e potencialmente expressiva. Sobre
essa consciência esclarece o linguista:
sempre
e por toda parte a consciência
linguística literariamente ativa (em todas as épocas da literatura
que nos são historicamente
acessíveis) encontra-se com “linguagens” e não com uma só
linguagem. Ela se
coloca diante da necessidade da escolha de uma linguagem. Em cada uma das suas manifestações
lítero-verbais, esta consciência se orienta ativamente para o pluridiscurso, ocupa
uma posição e elege uma "linguagem". (BAKHTIN, 2002, p. 101).
Guimarães Rosa, em sua obra, elege a linguagem regionalista e
popular. Apoiado na sua erudição, no conhecimento que tem sobre a língua, ele a
transforma
em linguagem poética, sendo essa uma das
características do texto literário. O
arranjo com as palavras e
a plurissignificação configura ao texto roseano a expressão literária, porquanto,
para que um texto seja considerado literário
é necessária uma elaboração especial das palavras. Entende-se, então,
que nem todo texto pode ser considerado literário mas:
qualquer assunto pode inspirar uma obra de arte, desde que o
autor consiga transmitir a emoção estética. As palavras aí estão, à disposição
de qualquer pessoa. Se houvesse palavras literárias em si mesmas, para escrever
um poema bastaria comprar um dicionário de palavras poéticas e...pronto. Não
existe uma hierarquia de palavras, Todas elas podem se tornar literárias; o que
as transforma é o arranjo, a relação nova entre elas. (CAMPEDELLI, SOUZA, 2002, p.11).
Dessa
transformação em que o autor se apropria das palavras e dá a elas o significado
pretendido, de acordo com o próprio interesse, criando uma estratificação
interna na linguagem, se origina a estilística do autor. No que concerne à
estilização Bakhtin esclarece que:
na estilização, a
consciência linguística do estilista trabalha, exclusivamente com o material da
linguagem a ser estilizada; ela esclarece e introduz nele seus interesses “de
língua de outrem”, porém não o seu material alheio contemporâneo. A estilização
como tal deve ser mantida até o fim.
[...] A justaposição dialógica, no romance, das linguagens puras ao lado
as hibridações, é um recurso potente para se criar modelos de linguagens
(BAKHTIN, 2002, pp. 160-161).
Finalmente,
segundo Domício Proença Filho, (1987) se a língua envolve uma dimensão social e
se caracteriza por ser sistemática, a utilização individual feita pelos
falantes, ou seja, a fala ou discurso é um conglomerado de fato assistemáticos e, em relação a ela, citando Barthes,
“um ato individual de seleção e atualização” (PROENÇA FILHO, 1987, p. 23).
Nesse sentido, de acordo com Proença Filho:
cada pessoa tem o seu ideal lingüístico. A língua
coloca à disposição de cada um múltiplo repertório de possibilidades. Ao assumir
o discurso, o indivíduo busca escolher os meios de expressão que melhor
configurem suas ideias, pensamentos e desejos. Essa escolha é que caracteriza o
estilo (PROENÇA FILHO, 1987, p. 23-24).
Embora
haja uma individualidade nos textos de cada autor, eles se valem da língua portuguesa e conforme esse
escritor, a partir dela, “criam-se realidades num uso especial da linguagem, a
arte literária. ”(PROENÇA FILHO, 1987, p.24)
Nesse
sentido, pode-se concluir que João Guimarães Rosa, ao se apropriar da língua e
atribuir à linguagem uma prenhez carregada de significação ele transforma a
prosa em poesia.
Além
disso, podem ser observadas, na obra Grande
Sertão: Veredas, seguindo as normas exigidas pelo sistema linguístico para
a estruturação da linguagem poética, os elementos que a compõe,
tradicionalmente, como o ritmo, a sonoridade e as figuras de linguagem.
Destaca-se a força imagética, utilizada pelo autor, partindo das descrições das
belezas naturais da região para a estética da obra.
Para
a análise desses elementos e a sua contribuição na estrutura da obra Grande Sertão: Veredas será privilegiado o estudo de Maria Betânia Diniz
Ferreira, em sua publicação para a revista literária da Universidade Federal de
Minas Geras. Essa autora realizou um
trabalho aprofundado e detalhado sobre essa obra de João Guimarães Rosa que
será apresentado no capítulo “Recursos
de Linguagem” da presente pesquisa.
¹ O idioleto é “a linguagem enquanto falada por um só indivíduo” - A. Marinet : A finctional view of language, Osford, Claredon Press, a962,
0. 105. Citado por Roland Barthes em Elementos da Semiologia, 13 ed , São Paulo: Cultrix, 2000, p.23. Entretanto,
sobre esse ponto, veja-se o que diz o crítico
Cavalcanti Proença M. , em
“Augusto
dos Anjos e Outros Ensaios”, 2.
ed. Rio de Janeiro, Grifo; Brasília, Instituto Nacional do Livro, 1973.p. 240.
- “Terá Guimarães Rosa inventado uma língua? Um dialeto? Pergunta ociosa, se
feita com intenção cientifica, uma vez que língua e dialeto são conceitos
delimitados em definições convencionadas internacionalmente. Ainda que se
considerem língua e dialeto com o máximo de amplitude semântica,ainda assim não
houve criação. O que ocorreu foi ampla utilização de virtualidades da nossa
língua,tendo a analogia, principalmente, fornecido os recursos de que ele se serviu
para construir uma fala capaz de refletir a enorme carga afetiva do seu
discurso. Daí, embora reconhecendo que, pela abundante contribuição individual,
essa fala encontra dificuldades para se incorporar à língua, não cabe falar em
criação, mas em esforço consciente.
² Esse ponto será abordado no capítulo
“Contexto Histórico” do presente trabalho.
Lécia Freitas
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