sexta-feira, 7 de junho de 2019


O PROCESSO: o que é   


          Diante de uma ação que requer uma penalidade é preciso que haja um processo. É inconcebível a aplicação de uma pena sem o processo. Entende-se, então, que o processo é o instrumento que de acordo com a Constituição Federal, fundamenta a função jurisdicional do juiz. Os ditames da Constituição asseguram a plenitude de defesa, a partir de percurso já disposto em lei, observado por um juiz, atendendo ao princípio da dignidade humana.
     Todo processo penal passa antes pelo inquérito policial, em que se busca a base para a propositura penal, ou seja, a busca de provas sobre a autoria e materialidade do crime. Ao final desse processo, haverá a aplicação da pena ao infrator da norma.
         Alguns autores afirmam que essa fase, o inquérito, pode se firmar contra o próprio acusado, uma vez que ele não pode exercer o contraditório em relação às provas existentes contra si, ainda que seja reconhecido como um instrumento que nega acusações infundadas.
        O livro O Processo, de Kafka, traz hoje uma releitura urgente diante da realidade do país e dos meandros, que se sabe existir em circunstâncias nas quais seria mister a observação dos princípios, que deveriam ter sido transferidos do drama relatado.
       A corrupção do sistema que se escancara no cotidiano em todas as esferas, a ineficiência das instituições corroídas pela ambição, por uma visão partidária e em causa própria, provoca em parte da sociedade o sentimento da inevitabilidade, a incredulidade até diante de certos acontecimentos e posturas.
      Num correlato com o livro em análise, pode-se dizer que há uma desesperança das pessoas, justamente porque percebem o erro, a ignomínia. Nesse momento, o que há a ser feito, antes de se pegar em armas, ainda que fictícias, é voltar-se para dentro de si mesmo e buscar o que legitima todas as ações humanas: a verdade.   
         No livro de Kafka é perceptível o Estado autoritário e a cumplicidade do Direito. Sendo assim, em um estudo, o drama  Kafkiano é analisado a partir dos princípios processuais.


A OBRA

       O Processo é um romance, escrito por Franz Kafka, e narra a história de um bancário, Josef K., processado sem saber o motivo.
       K.  trabalhava num banco e ocupava  um cargo de muita responsabilidade. Desempenhava sua função com dedicação, o que o levou, em pouco tempo, a se destacar na empresa, pode-se dizer, portanto, que seu perfil era de um funcionário exemplar.
        Sua história começa quando, na manhã em que completava 30 anos de vida, K. foi detido em seu próprio quarto por dois guardas. Esses guardas  tomaram o café que deveria ter sido dele, e logo após afirmam que isso seria um suborno. A partir deste  momento K.  é detido sem ter praticado nenhum delito. Inicialmente, ele imaginou ser uma brincadeira de seus colegas de banco, pois não conseguia encontrar uma explicação para o que estava acontecendo.
       K. acreditava que todo o mal entendido seria esclarecido, uma vez que não tinha nada a esconder.  Ao ser chamado para um interrogatório viu a oportunidade que precisava para se inteirar dos acontecimentos, no entanto,  enganava-se. O inspetor  era um homem agressivo e rude que o ameaçava e fazia chantagens. Ainda assim,  K. exigia esclarecimentos, porém  o inspetor e  os guardas não sabiam porque ele fora detido.
         Não há indícios na narrativa, que indique o autor da delação e nem qual seria a denúncia que o levava à detenção. A personagem de Kafka luta para descobrir respostas para esses fatos e qual o embasamento na lei para tal. Com o tempo contrata um advogado,  confiante  que encontraria respostas e também uma solução para o seu caso, mas logo o dispensou, pois percebeu desinteresse por parte desse.
       Depois de um tempo, tentou entrar em  contato com o judiciário, para fazer a própria defesa, entretanto,  constatou a existência de muitos outros processos, sendo que o seu seria apenas mais um, esperando para ser visto. Para ele, todo o processo não parecia verdadeiro, os acusadores e as testemunhas tinham atitudes duvidosas e absurdas.
       Percebe-se, e K. também percebeu, que  a presença do advogado é facultativa ou apenas tolerada diante dos casos em curso  naquele tribunal.
      Há uma participação do gestor nas diversas fases do processo, desde o colhimento  das  informações básicas e que iniciam os trabalhos, até  à defesa contra as acusações que são feitas, e finalmente as decisões proferidas nas quais saiu condenado.
          No diálogo entre K. e o pintor, fica evidente que ao se convencer da culpa do acusado o tribunal irá acusar, sendo muito difícil demover  essa convicção.
          Os acontecimentos se encaminharam de forma a levar K. a um estado de desânimo, já que ele não conseguia saber nada sobre o próprio processo. Isso o deixava apático e indiferente. No final, K. é morto de forma injusta e trágica. Dois homens o levam a um local isolado.  Enquanto um deles o segurava pela garganta o outro lhe enfia uma faca no peito atingindo o coração e revolvendo a arma ali por duas vezes.
Antes de morrer, K. ainda ouve um dos senhores dizer:
          — Como um cachorro!   — era como se a vergonha fosse sobrevivê-lo.  (KAFKA, 1979, p. 244).
        A obra de Franz Kafka é  uma história possível sob várias interpretações, já que é complexa e profunda.

OS PRINCÍPIOS PROCESSUAIS

       Os Princípios são ideias centrais de um sistema, norteadores, que tem a finalidade de dar sentido lógico, racional, harmonioso às leis e estabelecer os alicerces e linhas mestras das instituições, dando-lhes o impulso vital inicial. Os princípios constitucionais foram criados para servir de norte a toda legislação infraconstitucional, além de informarem a própria aplicação das normas constitucionais. São os princípios eleitos para figurar na Lei Fundamental de um povo e estão presentes em todo o sistema jurídico-normativo como elementos fundamentais da cultura jurídica humana.
      Um dos princípios processuais é o Contraditório, constando na Constituição Federal de 1988 que: “Aos litigantes, em processo judicial ou administrativo, e aos acusados em geral são assegurados o contraditório e a ampla defesa, com os meios e recursos a ela inerentes” (art. 5º, LV). E, acrescenta que  “ninguém será privado da liberdade ou de seus bens sem o devido processo legal” (CF, art. 5º, LIV).
         Como expõe Portanova:

 O princípio do contraditório é elemento essencial ao processo. Mais do que isto, pode-se dizer que é inerente ao próprio entendimento do que seja processo democrático, pois está implícita a participação do indivíduo na preparação do ato de poder. A importância do contraditório irradia-se para todos os termos do processo. Tanto assim que conceitos como ação, parte e devido processo legal são integrados pela bilateralidade. (PORTANOVA, 2001, p. 160-161, apud POLI, 2014, p.445.).

        Diante desse pensamento pode-se observar que o juiz, seja no caso penal ou no caso civil, antes de qualquer conclusão, deve ouvir ambas as partes. As condições para isso devem ser iguais, já que o contraditório determina sobre a oportunidade que é dada à parte e também à parte adversa.
        A essa ideia corrobora o pensamento de Leal citado por Melo:
 Às partes sejam dadas iguais oportunidades de atuação no procedimento que prepara o provimento e, por outro lado, que essas partes, a partir da reconstrução e interpretação compartilhadas também dos próprios fatos, possam efetivamente contribuir argumentativamente para a escolha da norma aplicável ao caso concreto, gerando repercussões obrigatórias na atividade de fundamentação desenvolvidas pelos órgãos judicantes. (LEAL, apud,    MELO 2012, p. 1).


Ampla Defesa e Contraditório

       A Declaração Universal dos Direitos do Homem em seu artigo 11°, n°1, garante que: “Toda pessoa acusada de um ato delituoso presume-se inocente até que a sua culpabilidade fique legalmente provada no decurso de um processo público em que todas as garantias necessárias lhe sejam asseguradas”.
        A ampla defesa e o contraditório são as bases do devido processo legal. A ampla defesa consiste em assegurar que o réu tenha condições de trazer para o processo todos os elementos tendentes a esclarecer a verdade. Já o contraditório é a própria exteriorização da ampla defesa. A todo ato produzido pela acusação caberá igual direito de oposição por parte do réu, bem como de trazer a versão que melhor lhe apresente ou fornecer uma interpretação jurídica diversa daquela feita pelo autor.
           
Imparcialidade

        Entre os princípios processuais, a imparcialidade diz que “Todo ser humano tem direito, em plena igualdade, a uma justa e pública audiência por parte de um tribunal independente e imparcial, para decidir sobre seus direitos e deveres ou do fundamento de qualquer acusação criminal contra ele” (Declaração Universal dos Direitos do Homem, Artigo X). Por constar entre os direitos do homem, o referido princípio adquire caráter universal.
       Isso significa que esse princípio é pressuposto de validade do processo; sendo que diante disso, o juiz deve se colocar acima das partes - primeira condição para o magistrado exercer sua função jurisdicional.
        A imparcialidade do juiz é considerada como garantia para ambas as partes e mesmo quando não expressa se constitui em uma garantia constitucional. Dessa forma, as partes podem exigir um juiz imparcial sendo que o estado tem o dever de se submeter à imparcialidade na solução dos casos que lhe são arrogados.
          De acordo com o princípio, o caráter de imparcialidade se configura como inseparável do órgão da jurisdição e é condição irrefutável para o exercício da função do juiz: manter-se entre as partes e acima delas.
          O ponto principal de um processo idôneo e justo está atrelado à imparcialidade do juiz, que consiste em se manter neutro e distante em relação ao que está em questão entre as partes. Essa postura deve ser colocada, enquanto investido no seu poder de jurisdição, no entanto, é natural que o juiz tenha seus ideais, seus princípios, a própria ética que norteiam seu comportamento enquanto ser humano. Juízes devem ser vistos como pessoas com sentimentos como qualquer um e agentes participativos da realidade social.
        Alia-se a esse princípio, o livre convencimento do juiz, em que a limitação legislativa irá, de acordo com as instruções dos autos, determinar o julgamento. O conhecimento do juiz irá basear-se no que lhe for demonstrado durante o processo, visto que se mantém alheio aos acontecimentos que geraram as questões.
         Dessa maneira, o juiz irá se apoiar na legislação vigente, nos elementos e subsídios existentes nos autos, decide, de acordo com seus próprios critérios de entendimento da realidade, e no momento da sentença, explanar sobre os motivos que o levaram em total liberdade, tomar tal demanda. A decisão do juiz será o resultado do julgamento, sendo que deverá aderir ao que as provas constantes mostrarem.
         O juiz poderá decidir procedente ou não o pedido de uma das partes ou de ambas e terá que ser imparcial no que diz respeito ao contraditório e a ampla defesa.  A Constituição Federal de 1988 assegura a imparcialidade do juiz, nos processos, estipulando garantias e prescrevendo vedação aos magistrados.

Isonomia
       O sentimento de igualdade luta pelo tratamento justo a todos que ainda não conseguiram receber os direitos básicos, fundamentais para uma vida digna. O princípio da igualdade, ou princípio da isonomia, tem sua origem nas civilizações mais antigas e está contido dentro das acepções de justiça mais variadas e com interpretações diferentes.
        Dessa forma, infere-se que o princípio de isonomia tem como fundamento ser contrário aos privilégios e distinções desproporcionais. O interesse das classes mais abastadas pode conferir uma interpretação que discorda do que é realmente.
O direito do ser humano à igualdade não suscita falas inflamadas como a liberdade, porém  numa democracia é fundamental o sentido da igualdade.
            No que se referem à isonomia, os nominalistas, nome dado às pessoas que seguem determinada orientação isonômica, afirmam que a desigualdade é uma característica do Universo, sendo que, nesse caso os homens nascem e permanecem desiguais. Os idealistas consideram que deve haver uma isonomia absoluta, ou seja, uma igualdade plena entre todos os homens, sendo a primeira orientação.
        Pode-se afirmar, de acordo com a literatura, que Rosseau pensava dessa forma, segunda orientação; a terceira orientação, realista,  diz que os homens são iguais, havendo desigualdade fenomênicas como a social, a política, a moral,  etc.
          No Brasil, a Constituição Brasileira  prevê o princípio da igualdade em seu art. 5º, caput . A Constituição volta a destacar o princípio da isonomia, como no art. 3º, III, 5º, I, 150, II e 226, § 5º., no entanto, o art. 5º, caput, da CF, é suficiente  consagrar entre nós o princípio da isonomia. O fato de ser repetido em outros preceitos constitucionais, ainda que com outras interpretações, atesta a importância conferida a esse princípio.
        O princípio da isonomia prevê interpretações que devem observar critérios da justiça social. O presente estudo pretende abordar apenas a igualdade do indivíduo perante a lei. Entende-se que o juiz deve promover a igualdade das partes no processo, em seu aspecto formal, aproximando-se do aspecto nominalista de igualdade, o que pode evitar a quebra da imparcialidade do julgador. É fundamental que o magistrado considere as diferenças sociais, políticas, e econômicas existentes entre os demais sujeitos que vivem a relação processual.

Publicidade

         A democracia exige transparência no trato com a coisa pública para que a população tenha conhecimento da atuação dos seus representantes, e possa exercer algum controle. Essa situação é importante, uma vez que contribui para nortear o povo no momento de eleger os agentes públicos e também deliberar sobre assuntos de interesse da coletividade, quando necessário.
        Embora não sejam eleitos pelo povo, os juízes brasileiros exercem uma parcela do poder do estado e por isso, também, devem prestar contas de como agem em suas funções jurisdicionais e administrativas. Sendo assim, os atos dos juízes devem ser conhecidos por meio de publicidade, as motivações para tanto, e assim serem reconhecidos como legítimos. Exige-se o controle democrático dos atos judiciais que está associado à garantia  da publicidade processual.
       A publicidade num processo criminal tem a função de favorecer a transparência em um julgamento que se pretende justo, dando acesso aos autos e assegurando a presença das partes envolvidas e seus advogados, nas audiências judiciais.   Em alguns países, a constituição permite que a sociedade em geral tenha acesso aos autos de um processo, como garantia do acusado numa ação penal, e isso está associado ao julgamento justo.
      Destaca–se que o réu pode optar por pleitear ao juiz a decretação de  sigilo para preservar a própria imagem de suposto autor de crime, e também para impedir influência no resultado do processo devido à cobertura jornalística, quando há comoção da sociedade.
      O princípio da publicidade está garantido no Artigo 10º da Declaração dos Direitos Universais do Homem que dispõe:Todo homem tem direito, em plena igualdade, a uma justa e pública audiência, por parte de um tribunal independente e imparcial, para decidir de seus direitos e deveres ou do fundamento de qualquer acusação criminal contra ele”. Também na Constituição Federal de 1988 há menção ao princípio da publicidade: Art. 37. A administração pública direta e indireta de qualquer dos Poderes da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios obedecerá aos princípios de legalidade, impessoalidade, moralidade, publicidade e eficiência [...].


A ANÁLISE

          Em O Processo, de Franz Kafka, o acusado não é inteirado das causas que o levaram a ser processado. Joseph K. é impossibilitado de se defender perante a "justiça", embora tente fazer com que isso aconteça. Ele foi ouvido em uma audiência, mas não consegue obter o acesso aos autos do processo. O advogado que o acompanha não lhe dá informações consistentes, apenas explicações sem definições certas, e fazia questão de deixar transparecer a própria influência junto  ao juiz e os funcionários da justiça.
        Em uma passagem, a personagem central, Joseph K. afirma ao pintor Titorelli  que "Mas todos estão de acordo em que a acusação mais insignificante não fica anulada sem mais nem menos, senão que a justiça, uma vez que formulou a acusação, está firmemente convencida da culpabilidade do acusado e em que dificilmente se pode alterar tal convicção"( 1979, p. 161).
      O pintor responde que nunca a justiça abandona tal convicção. Infere-se, então que, a partir de uma acusação proferida, o individuo é considerado culpado. Isso pode ser comprovado no romance e também na nossa realidade.  Nem sempre a justiça cumpre os princípios constitucionais. Existem obstáculos, é fato, como os financeiros, organizacionais, e processuais. No entanto, é de conhecimento geral que a corrupção e a burocracia do judiciário favorecem sobremaneira para que os direitos fundamentais do homem sejam negados, ou de acordo com outros interesses.
              — O senhor está detido.  
              — É o que parece – disse K.
             — Mas por quê? – perguntou então.
             — Não fomos incumbidos de dizê-lo. Vá para o seu quarto e espere. O procedimento acaba de ser iniciado e o senhor ficará sabendo de tudo no devido tempo (...).
              — Como posso estar detido? E deste modo?   — Indaga K.
            —Lá vem o senhor de novo.   — disse o guarda, mergulhando um pão com     manteiga no potinho de mel.
              — Não respondemos a perguntas como essa. (KAFKA, 1979, p.9).
       Josef K. tomou conhecimento de que estava sendo processado, chegando a participar de audiência de instrução. Porém é fato que não conseguiria influenciar o magistrado  ou os dois partidos presentes na sala de audiência, com seu discurso. A personagem estava apenas sendo testada, como se tudo já estivesse definido para os próximos atos. Isso pode ser comprovado em:
Então é isso – bradou K. lançando os braços para o alto, o súbito reconhecimento queria espaço –, todos vocês são funcionários; pelo que estou vendo, são vocês o bando corrupto contra o qual eu falei, vocês se reuniram aqui como ouvintes e espias, formaram partidos de fachada, um dos quais aplaudiu para me testar; vocês queriam aprender como se deve enganar um inocente! (KAFKA, 2005, p.55).
Em passagens mais adiante, na conversa que teve com o pintor Titorelli, ele lhe revela:

- Você não parece possuir ainda um conhecimento ao menos geral da justiça, declarou o pintor, que tendo separado muito suas pernas golpeava com as pontas dos pés sobre o piso.
– Mas desde que você é inocente não terá necessidade de tal conhecimento; eu somente posso tirá-lo do aperto.
– Como se arranjará para consegui-lo? – Perguntou K.
 – Você mesmo acaba de me dizer que com a justiça não valem de modo algumas argumentações ou provas.
– Não valem as provas que são apresentadas diante dos tribunais – replicou o pintor... (KAFKA, 1979, p.  162).

           Diante de uma acusação o indivíduo tem o direito de buscar elementos, meios legais e apresentação de provas que possam beneficiar sua defesa e/ou esclarecimento do que ocorreu. No fragmento descrito acima, evidencia-se que o tribunal não permitiu ao acusado nenhuma ação que o ajudasse a produzir ou encontrar provas que comprovassem sua inocência. Com isso, fica embargado o seu direito de à Ampla Defesa e ao Contraditório.
          Em outra passagem, em que se vê aviltado esses direitos K. inquire:  “Infiro-o de fato de ver-me acusado sem que seja possível encontrar que eu tenha cometido o menor delito pelo qual se justifique uma acusação. Mas isto também é acessório; o fundamental é outra coisa: quem me acusa? Que autoridade superintende o inquérito? Vocês são funcionários? (KAFKA: 2011, p. 50)”.
          Por desconhecer o motivo de sua detenção e qual lei infringiu, K. não tem como exercer seus direitos de contestar as acusações apresentadas e montar uma defesa bem elaborada, de acordo com o Princípio de Ampla Defesa e do Contraditório.

Imparcialidade

       A imparcialidade pode ser um princípio em que se observa o dever de favorecer um estado de coisas que levem a um julgamento isento de interesses ou de razões inadequadas observadas por quem está julgando. Observa-se a imparcialidade como norma universal prevista no Artigo 10 da declaração dos Direitos do Homem  “Toda pessoa tem direito, em condições de plena igualdade, de ser ouvida publicamente e com justiça por um tribunal independente e imparcial, para a determinação de seus direitos e obrigações ou para exame de qualquer acusação contra ela em matéria penal.”
        No Brasil, não há menção sobre a imparcialidade, na Constituição Federal, talvez porque outros diversos dispositivos constitucionais tratam do princípio, naturalmente, e instrumentaliza garantias legais. Os processos se tornam ambientes naturais aonde vêm à tona esse princípio, com direitos e garantias. Nesse sentido as regras processuais são responsáveis pela efetivação desses princípios com seus direitos e garantias.
        Na obra em análise, O Processo, a personagem K. é acusada passando a ser réu e viver uma prisão dentro de casa sui generis, uma vez que pode sair para trabalhar, como visto em:
- Quer, sem dúvida, ir agora para o banco? Diz-lhe o inspetor.
- Para o banco? – perguntou K. – Julgava-me sob prisão.
-Como posso eu ir ao banco, se me encontro detido?
-Ah! – disse o inspetor que se achava já próximo da porta -, compreendeu-me que se encontra sob prisão, claro, mas isso não deve impedi-lo de exercer a sua profissão. Também não deve sentir-se incomodado nos seus hábitos ( KAFKA, 1979, p. 20) .
        Ao lhe ser negado o direito de saber os motivos de sua detenção, e do quê está sendo acusado, há uma declaração implícita de imparcialidade. Neste caso, ainda que não haja um confronto direto com o magistrado, a partir das bases em que se monta o processo, e da forma como o advogado, e os funcionários do tribunal, tratam o acusado,  há uma afronta notória quanto aos princípios da imparcialidade e da isonomia. Comprova-se:
         K. vira pessoalmente: os magistrados, mesmo alguns de nível superior, dão de bom grado,informações explícitas ou menos fáceis de interpretar, discutem o seguimento imediato do processo, chegam até nalguns casos a deixar-se convencer e adotam então uma opinião diferente da sua. Kafka, argumenta a seguir que não se deve confiar demasiado neles; podem exprimir com força novas intenções favoráveis à defesa, e talvez logo no regresso ao seu gabinete irão elaborar para o dia seguinte uma decisão judicial diametralmente oposta e talvez mais severa ainda para o acusado do que a sua primeira intenção, que declaravam abandonado (KAFKA, 61-62)
      Pode-se perceber nessa passagem que o desconhecimento do conteúdo do interrogatório pode levar a uma interpretação imparcial por parte do advogado e de outros envolvidos e funcionários do tribunal, baseada tão somente na própria visão sobre os fatos, sem dar ao acusado a possibilidade de defesa.
          Na obra, Kafka expõe sobre a compreensão de que há falhas no sistema fechado do tribunal, nos escalões inferiores, contendo funcionários desleais e corruptos. Essa realidade favorece a ação de suborno a advogados desonestos.         Aliada a essa situação ocorre o fato de descobrir que um industrial tomara conhecimentos do seu processo por meio de um pintor. Isso significa que outros sabiam o que ele mesmo não tinha conhecimento.
       Durante o interrogatório a que é submetido K. interrompe a narração que faz à assistência e ao juiz de instrução e olha na direção do juiz ao perceber que este faz um sinal com os olhos a alguém na plateia. K. se dá conta que está meio a algo que não entende muito bem:
              — “Neste mesmo instante, o juiz de instrução a meu lado dirige um sinal combinado a alguém entre vós. Há, portanto, entre vós gente que é manipulada a partir deste estrado” (KAFKA, 1979, p.52)
            K. conclui que as manifestações da assembleia durante  o seu depoimento aconteciam de acordo com a vontade do juiz que as comandavam a partir de sinais que enviava sutilmente. K. percebe que então que está no meio de uma farsa, e que o juiz age parcialmente, de acordo com os interesses de outros funcionários.
             —“Todo este caso diz-me muito pouco respeito, por isso o julgo calmamente e ganhareis muito se me escutardes, admitindo que tenhais um pouco de interesse por este pretenso tribunal” (KAFKA, 1979, p. 52)
       Ao ver a forma como o juiz de instrução agia quanto ao seu julgamento K. finalmente enxerga o que estava acontecendo e se dirige à assembleia:
       —“Não resta qualquer dúvida de que por detrás de todos os procedimentos deste tribunal, portanto no meu caso preciso, por detrás da detenção e presente instrução, dissimula-se uma vasta organização. Uma organização que não só emprega guardas corruptos, inspetores estúpidos e juízes de instrução modestos no melhor dos casos, mas sustenta uma alta magistratura suprema, com o seu incontornável cortejo de diligências, de escrivães, de polícias  de outros auxiliares, talvez mesmo os seus carrascos, a palavra não me mete medo” (KAFKA, 1979, p.53)
       Dessa forma, K. deduzira, a partir da pergunta do juiz de instrução, quando da sua chegada no tribunal se ele era pintor de paredes, sendo que ele era gerente de bancos. Enquanto falava ao juiz K. havia visto que o juiz tinha nas mãos um caderninho de notas e não os autos do processo. K. então pega o caderninho e mostra à assistência, humilhando o juiz.
           Isso comprova para K. que sua detenção tinha sido uma farsa e que esse procedimento devia acontecer com outras pessoas, diante da fala dos guardas que haviam revelado sobre os bens dos acusados que ficavam consignados e que deveriam ser roubados por funcionários desonestos.
          No entanto, todos esses acontecimentos não foram suficientes para abalarem aquelas pessoas e K. se dá conta de que eram funcionários, todos corruptos. K. consegue sair do local e ir embora.
          Apreende-se que essas passagens do drama de K. revelam não só a imparcialidade de tratamento, como também a uma quebra da isonomia, princípios que estão sempre atrelados.
      Outro detalhe que chama a atenção é narrado no momento em que K. percebe as insígnias de partido pregadas às golas dos casacos vestidos pela assistência e também do próprio  juiz o que comprova a imparcialidade constante no julgamento.
        O Princípio da Igualdade ou Isonomia é uma interface da imparcialidade. A consideração objetiva de opiniões determinadas pela lei deve ser levada observada nas relações dos indivíduos com o Estado, considerando a pessoa, nas suas decisões. Nesse caso o sistema não pode se submeter a antipatias ou simpatias pessoais, impulsões político-partidárias ou preferências de qualquer tipo.  A imparcialidade e neutralidade devem prevalecer tornando infenso o sistema a tais situações.

A publicidade

        Na obra de Kafka, O Processo, há uma narração de um processo sem o respeito a nenhuma das garantias. Nela o protagonista se vê sozinho tentando de defender da imputação de um crime que ele desconhece completamente. E nenhuma das pessoas s quem ele pergunta sabe responder sobre isso. Todo o processo é feito de forma sigilosa e fechada.
        A garantia da publicidade confere ao público a possibilidade de participar de certa forma da administração da justiça e também é uma tentativa de controlá-la. E assim, sugere uma proteção  e uma defesa para o réu.
      Em O Processo esse princípio é negado uma vez que o réu não sabe o que está acontecendo, nem tampouco seu advogado tem acesso aos documentos. Na obra, Kafka lembra que o “processo judicial não é público; se o tribunal julgar necessário, pode torná-lo público, mas a lei não o exige. [...] Os documentos conservados no tribunal e sobretudo a peça de acusação, são incessíveis ao acusado e à sua defesa”.
       “De fato, o acusado não tem acesso aos processos do tribunal, e é muito difícil determinar a partir dos interrogatórios sobre o que os documentos assentam, e os advogados não têm o direto de estar presente nos interrogatórios”.
       Diante desses fatos: “K. agora tinha compreendido que a organização do tribunal, nos escalões inferiores, não é perfeita, inclui funcionários desleais e corruptos, o que provoca de certo modo falhas no sistema fechado do tribunal”.
           Kafka ainda pontua que:
Nestas circunstâncias a defesa encontra-se numa situação desvantajosa e difícil, mas que tudo isso é proposital. Porque na realidade, a lei não autoriza a defesa, apenas a tolera e a questão de saber se a alínea em causa deve ser interpretada pelo menos no sentido de tolerância, é ela própria controversa.

          Em outra passagem, em que se vê aviltado esses direitos K. inquire:  “Infiro-o de fato de ver-me acusado sem que seja possível encontrar que eu tenha cometido o menor delito pelo qual se justifique uma acusação. Mas isto também é acessório; o fundamental é outra coisa: quem me acusa? Que autoridade superintende o inquérito? Vocês são funcionários? (KAFKA: 2011, p. 50)”.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

      A partir da leitura do livro e das pesquisas realizadas para a análise do livro “O Processo”, de Franz Kafka, pode-se afirmar a atemporalidade das questões abordadas pelo autor. O drama vivido por Joseph K. quanto ao seu processo e as irregularidades vistas, de acordo com os princípios processuais, são comumente percebidos em nossos dias, e noticiados pelas mídias, conforme artigos pesquisados na internet.
       A corrupção existente no livro e que atinge Joseph K de forma inesperada, tornando-o culpado, não se sabe de quê, é um retrato antecipado de situações que vivemos na atualidade, deixando um rastro de desesperança na verdade e na justiça. O homem comum não tem a quem recorrer.
      No que tange aos direitos humanos, pode-se afirmar que o princípio da igualdade é aquele que deve ser mais observado, por ser a base de todos os outros. Compreende-se que os homens nascem iguais, e permanecem iguais, essencialmente, seja perante o Direito, seja perante todas as outras Ciências. Entretanto, o homem perde esse direito diante de outro homem em diversas situações como fenômenos sociais, políticos, morais, etc.

REFERÊNCIAS

KAFKA, Franz. O Processo.  Tradução de Torrieri Guimarães. – São Paulo : Abril Cultural. 1979.

MELO, Nathalia Vieira. Princípios do contraditório e da ampla defesa como garantia de participação do servidor na construção da decisão final do processo administrativo disciplinar. Diritto Brasiliano. 2012. Disponível em:
Acesso em 26 nov. 2018.


POLI, Camilin Marcie.  O Contraditório Como Elemento Essencial Do Processo.  Constituição, Economia e Desenvolvimento: Revista da Academia Brasileira de Direito Constitucional. Curitiba, 2014, vol. 6, n. 11, Jul.-Dez. p. 442-458. 445. Disponível em:
Acesso em 15 nov. 2018.





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